São Paulo, sexta-feira, 11 de março de 1994
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Cinema produz e compila imagens da barbárie

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Há pouco mais de dez anos, a americana Annette Insdorf inventariou 125 filmes de longa-metragem, ficcionais e documentários, produzidos para o cinema e a TV, que tinham por tema o Holocausto. Quando seu livro, "Indelible Shadows: Film and the Holocaust" (ed. Vintage), foi reeditado, seis anos depois, mais 45 novos filmes direta e indiretamente ligados ao extermínio de judeus haviam sido vistos por ela, entre os quais dois documentários importantíssimos: "Hotel Terminus", de Marcel Ophuls, sobre o carrasco nazista Klaus Barbie, e "Shoah", do também francês Claude Lanzmann, com nove horas de depoimentos de sobreviventes e testemunhas do horror concentracionário.
Até tomar conhecimento da pesquisa de Insdorf, tinha idéia de que o mais remoto filme sobre o Holocausto (e o gueto de Varsovia) era a comédia de Chaplin, "O Grande Ditador", rodada em 1940. Dois anos antes, contudo, um grupo de refugiados judeus, instalado em Moscou, já fizera um longa sobre o anti-semitismo alemão, intitulado "Professor Mamlock", que não circulou pelo Ocidente por ser "comunista demais". Em certo sentido, Chaplin foi mesmo um pioneiro –assim como outro mestre da comédia, Ernst Lubitsch, que em 1942 ridicularizou a ocupação de Varsóvia pelos alemães em "Ser ou Não Ser" (To Be or Not To Be).
Ainda em 1938, lembra Insdorf, os ingleses John e Roy Boulting planejaram um drama inspirado nas tribulações do pastor protestante Martin Noemoeller, que por seus sermões antinazistas e por sua proteção aos judeus acabaria em Dachau. Tiveram de esperar dois anos pelo sinal verde do governo britânico, mas "Padre Hall" afinal foi realizado em 1940. Meses depois, o ator Leslie Howard teve um estalo: adaptar ao contexto da Segunda Guerra Mundial a rocambolesca figura de Pimpinela Escarlate. E assim nasceu "Pimpernel Smith", cavalheiro inglês que resgata cientistas e intelectuais da Alemanha, como Gary Cooper faria, cinco anos mais tarde, em "O Grande Segredo", de Fritz Lang.
As imagens mais contundentes e horripilantes do holocausto datam do fim da guerra, quando as primeiras câmeras aliadas devassaram os campos de concentração de Belsen e Buchenwald, recolhendo material para inúmeros documentários, inclusive um, compilado por Alfred Hitchcock em 1945, que depois de provocar náuseas em seletas platéias londrinas foi arquivado no Museu Real Britânico. Hitchcock trabalhou com películas utilizadas por diversos cinegrafistas anônimos, mas pelo menos um deles já era célebre na época: George Stevens, então major do exército americano, que 14 anos depois adaptaria à tela "O Diário de Anne Frank".
Em termos de ficção, o primeiro retrato de um campo de concentraçao a causar impacto no mundo inteiro surgiu na Polônia: "Última Etapa", dirigido em 1948 por Wanda Jakubowska, ex-prisioneira de guerra, que retornaria ao tema, duas décadas depois, em "O Fim do Nosso Mundo". Malgrado os esforços de ingleses e americanos, as mais incisivas dramatizações do Holocausto foram assinadas por sobreviventes do Leste Europeu, em especial por conterrâneos de Jakubowska, como Andrzej Wajda, autor do clássico "Kanal", e Andrzej Munk, morto em 1961, que além do impressionante "Heróica" deixou uma obra-prima inacabada, "A Passageira", perto da qual "A Lista de Schindler" fica deste tamaninho.
No prefácio ao estudo de Insdorf, o judeu Elie Wiesel, ex-prisioneiro nazista e Nobel da Paz de 1986, adverte que o Holocausto jamais deve ser tratado superficialmente ou de forma demagógica. Isso explica sua preferência por documentários –sobretudo como os que Ophuls e Lanzmann fizeram– e sua veemente repulsa a vulgarizações sensacionalistas do gênero "Holocausto", série de TV hollywoodiana que em 1978 bateu recorde de audiência na América e gerou uma sequela, "Holocausto de Mulheres".
Os franceses, com as exceções conhecidas, comportaram-se muito mal durante a ocupação nazista, mas se penitenciaram através do cinema, produzindo documentarios fundamentais sobre o apocalipse comandado por Hitler. Só Ophuls fez dois: 17 anos antes de "Hotel Terminus", reuniu quatro horas de depoimentos sobre a barbárie nazista no comovente "Le Chagrin et la Pitié". Utilizando apenas imagens de cinejornais de época, Claude Chabrol reconstituiu, recentemente, um painel da França ocupada, em "L'Oeil de Vichy", com farto material sobre o anti-semitismo vigente no governo Pétain.
Também é de um francês o mais admirado filme sobre campos de concentração: "Nuit et Brouillard", inteligente e sofisticada meditação de Alain Resnais sobre o horror de Auschwitz, composta por imagens em preto-e-branco do campo, nos anos 40, e tomadas em cores, feitas em 1955, costuradas por um texto impecável de Jean Cayrol, lido pelo ator Michel Bouquet. Spielberg confessou ter visto "Nuit et Brouillard" mais de dez vezes.

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