São Paulo, sexta-feira, 11 de março de 1994
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Mais negociação e menos legislação

JOSÉ SERRA

Estabilizada a economia, os salários devem ser reajustados de acordo com uma fórmula decretada pelo governo ou através de negociações diretas entre empregadores e empregados? A unicidade sindical, imposta por lei, deve ser preservada para não atrapalhar o julgamento dos dissíduos coletivos pela Justiça do Trabalho? O ressurgimento de polêmicas como essas evidencia quanto permanecem arraigadas, entre nós, as resistências à democratização e modernização das relações trabalhistas.
As disputas entre o capital e o trabalho são inerentes às sociedades contemporâneas e envolvem, geralmente, dois tipos básicos de conflitos: de direito e de interesses. Os conflitos de direito resultam de discordâncias sobre a interpretação e aplicação das normas legais. Os conflitos de interesse referem-se a pleitos econômicos, como a reivindicação de aumentos salariais.
Os métodos de resolução desses conflitos variam. Há países que privilegiam a autocomposição das disputas pelas partes envolvidas, através dos procedimentos de negociação, mediação e arbitragem. Os representantes de empregadores e empregados tentam, em negociações diretas, obter um acordo. Se não conseguem, recorrem a um mediador para aproximar as partes na busca de uma solução de consenso. Se o impasse persiste, podem recorrer a um árbitro, aceito pelas partes, para escolher uma das propostas alternativas. Ou se enfrentam em movimentos grevistas até que se consiga uma solução negociada. A Justiça só intervém para garantir a ordem pública e o respeito a uma legislação mínima de proteção aos trabalhadores.
Em outros países, prevalece a solução autoritária dos conflitos, recorrendo-se a uma legislação detalhista e a sentenças judiciais. As negociações, quase sempre, desembocam no Judiciário. Ainda assim, poucos desses países têm um ramo especializado do Judiciário para julgar os conflitos trabalhistas, e apenas em alguns essa Justiça especializada desfruta do poder normativo de emitir sentenças com força de leis sobre pleitos econômicos.
Uma pesquisa recente sobre os 40 países com PIBs mais altos na Europa, Américas, Ásia e Oceânia, coordenada pelo professor José Pastore, da Universidade de São Paulo, verificou, por exemplo, que a maioria desses países não tem Justiça do Trabalho. Onde ela existe, ocupa-se apenas dos conflitos de direito. E somente em dois países, a Iugoslávia e o Brasil, a Justiça do Trabalho tem competência para julgar conflitos de direito e de interesse.
O Brasil representa, portanto, um país raríssimo em que um ramo especializado do Judiciário, a Justiça do Trabalho, criada em 1934, goza de poderes tão amplos para interferir nas relações individuais e coletivas de trabalho. Alguns poderiam imaginar que essa interferência excessiva da lei e da Justiça favorece a tranquilidade social. A verdade, porém, é outra. Nos países em que há pouca negociação e muita legislação e em que a Justiça do Trabalho julga pleitos econômicos, os conflitos são muito mais numerosos. Em 1991, por exemplo, segundo apurou a mesma pesquisa, houve 1,5 milhão processos trabalhistas no Brasil, 60 mil na França e apenas 1.000 no Japão.
Para encarar a montanha de processos, as juntas e tribunais se multiplicaram no Brasil. Em 1941, quando foi efetivamente instalada, a Justiça do Trabalho tinha 36 juntas de conciliação e julgamento. Em 1991, 50 anos depois, já englobava 1.092 juntas. Apesar dessa multiplicação de vogais, juízes, ministros e gastos, a duração média de um processo trabalhista no Brasil já alcança sete anos, se as partes utilizam todos os recursos possíveis.
A própria qualidade das sentenças, segundo avaliação de especialistas, decaiu com a acumulação dos processos e a necessidade de proferir sentenças normativas e genéricas sobre disputas envolvidas com numerosas particularidades técnicas e peculiaridades locais.
O sistema brasileiro de solução das disputas trabalhistas, portanto, além de estimular os conflitos coletivos e individuais, é moroso, caro e de baixa eficiência. Se ainda persiste, é pela forte pressão corporativista dos que se beneficiam com esse sistema ultrapassado, como juízes classistas, lideranças do sindicalismo patronal e trabalhista e alguns advogados trabalhistas.
O Congresso não pode ceder a essas pressões e retirar da agenda prioritária da revisão constitucional a tarefa de reformular as relações entre o capital e o trabalho. Ao contrário, completando o esforço dos constituintes de 1988, precisa ampliar a liberdade e a autonomia sindicais, introduzir o sistema de contratação coletiva e transferir muitas regras da Constituição ou da CLT para o âmbito dos contratos coletivos.
Em consequência, o poder normativo e a interferência da Justiça do Trabalho nos conflitos de interesse devem ser extintos, assim como os cargos de vogais e juízes classistas. À Justiça do Trabalho deve ser reservada apenas a competência para julgar os conflitos de direito, por juízes concursados e de carreira –como nos demais ramos do Judiciário.
O benefício será duplo. Na esfera política, incentivará a organização representativa de empresários e trabalhadores. Na esfera econômica, permitirá uma forma mais descentralizada, e portanto mais eficiente, de determinação dos níveis de remuneração e emprego nos diversos mercados de trabalho setoriais e regionais.

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