São Paulo, sexta-feira, 11 de março de 1994
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O simbolismo da nova moeda

RENATO JANINE RIBEIRO

Os teóricos da economia discutem, há séculos, de que modo a moeda simboliza –ou representa– riquezas. Esta questão, aliás, é essencial na teoria econômica. Mas outro aspecto, este mais observado nas ciências humanas que lidam com a significação das ações, também merece nossa atenção: o modo como a moeda se faz símbolo de uma nação, ao mesmo título que uma bandeira ou um suposto caráter nacional.
Que dizer, então, do simbolismo da nova moeda? Talvez o primeiro ponto a destacar seja o fato de retomar o nome de velha moeda, o real, de plural réis. Velha mesmo porque, quando em 1942 Getúlio Vargas criou o cruzeiro, a moeda extinta já não era o real, mas o mil-réis. É curioso que o Brasil tenha vivido boa parte do período republicano tendo, por unidade de moeda, um milhar. Mas, seja como for, o real já foi nossa moeda.
Esse retorno a velhos nomes parece constituir um distintivo de nossa cultura monetária desde que começaram os "planos". Tivemos primeiro o cruzado, que já fora moeda em Portugal à época das navegações. Depois, voltamos ao cruzeiro, com a reforma Collor. Agora, ao real. Haverá, nestas constantes retomadas, alguma mitificação do passado, uma tentativa de desfazer os erros recentes e de propor um novo começo, que literalmente zere as vicissitudes, os percalços?
No entanto, a retomada dos nomes geralmente se faz numa certa inconsciência geral. Em 1986, contou-se que o nome da nova moeda foi proposto ao presidente Sarney como sendo mera contração de "cruzeiro desindexado" (sic), e que coube ao então chefe de Estado explicar a seus colaboradores que cruzado já fora moeda nossa. Da mesma forma, em 1994, o nome "real" aparece como se constituísse novidade, tanto que nem sequer nos ocorre o velho plural réis: basta ouvir o que dizem as personagens dos folhetins televisados Globo, as primeiras a usar a nova unidade e que a pluralizam, sempre em reais.
Há uma razão para isso, afora o possível desconhecimento de nossa história por aqueles que pensam nossa economia. É que real, plural réis, referia-se a el-rei de Portugal; como nome de moeda, seria o equivalente de "soberano", para darmos um exemplo inglês. Já real, plural reais, remete à realidade. O que o novo nome pretende indicar é que a moeda sai da fantasia e ingressa no mundo das coisas como elas são. De súbito, a inflação vê-se sinônima de fantasia, e igualada a estabilização à realidade.
Talvez isso justifique o segundo eixo a explicar a nova moeda. Lemos nos jornais que as notas em reais terão figurados animais de nossa fauna: arara, onça-pintada, beija-flor e garça. Recordemos que nas últimas décadas nossas notas –e por vezes as moedas metálicas– alternaram três famílias de imagens: grandes personagens da história brasileira, tipos regionais e uma natureza basicamente animal. Aos poucos, a primeira família de motivos, que a despeito de seu caráter ufanista e grandiloquente dava a medida de uma história, foi cedendo lugar às outras duas, das quais a primeira consolida identidades regionais como sustentáculo de uma suposta identidade nacional (que deveria expressar-se, entre outros suportes, na moeda) e a segunda erige em emblema nossa natureza.
Analisando nossa bandeira, recentemente Marilena Chaui lembrava que ela, ao contrário da francesa, que aponta para a história e as lutas, exibe um simbolismo inteiramente natural –no caso, vegetal e mineral. Nossa classe dominante, concluía ela, nega a história e tenta identificar seu domínio com a natureza.
Ora, é o mesmo naturalismo atávico, agora transposto ao mundo dos animais, que defenderá as cores do real. A opção pelas imagens da fauna tem vários sentidos. Começa, é claro, pelo de beleza, de algo atraente, não conspurcado. Funciona, assim, como compensação por aquilo que se tornou nossa sociedade, poluída, competitiva. E desta forma encena uma imagem de equilíbrio, harmonia, inocência –que costumamos associar à natureza virgem, não devastada pelo homem.
Dará, então, para resumir em rápidas pinceladas o imaginário cristalizado na representação da nova moeda? Ela é realidade, entendida como negação de tudo o que é errático e pernicioso na fantasia. Ela desconhece, e portanto recusa, a história, entendida agora como uma sucessão multissecular de oportunidades perdidas. Nosso passado, assim, torna-se uma espécie de fantasia, de delírio coletivo e vão. Finalmente, a realidade agora invocada não é senão a natureza virgem, um começo de tudo, elidindo o fato essencial de que os dirigentes de nossa economia, ao lançarem suas fichas na integração mundial e nada proporem contra a desigualdade social ou a poluição da natureza, em tudo se opõem a esse mundo bucólico.
Mais uma vez, parece, por esse simbolismo, que embarcamos no sonho da natureza redentora, à qual sacrificamos a dolorosa, porém necessária, consciência de uma história pesada, quase pesadelo. De modo, para terminar, que o real, assim concebido, é sonho: o sonho de que possamos nos desfazer do passado simplesmente relegando-o à esfera da fantasia e do erro ou errância, e apostando, apenas, como fundamento, na natureza prévia ao civilizado.

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