São Paulo, domingo, 13 de março de 1994
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O lava-rápido Betinho

RICARDO SEMLER

A brasilidade tem picos agudos de bondade e vales lineares de crônica gatunagem espiritual. Assim, nos aparecem especiais Betinhos na função de eclipses fugazes de um sol impiedoso de bandidagem. Pois é só olhar a lista dos mais fortes candidatos à chefia da nação –três quartos deles são inveterados malandros, enganadores-mor da opinião mal-esclarecida, e vão muito bem, obrigado.
Forçado a fazer uma aposta, diria que o número de desonestos que entrarão para o Executivo será igual ou mesmo maior do que a lista dos que saem. O brasileiro parece ter adquirido um gosto inexpugnável pelo banditismo. Dá súbitas baforadas de ar fresco, comparece à campanha da fome, ou à causa de uma menina prostituída, ou então de um motorista de presidente que armou coragem para trair o patrão, e depois cansa. Cansa o cansaço de quem acha que a alma foi limpa por um lava-rápido espiritual, como quem sai da igreja aliviado, só para então voltar ao bar ou bordel, enxuto até a próxima confissão.
Quem leva de frente o arrebatador ar de um Filadelfia, vê o Tom Hanks se esvair a olhos nus, derrama as lágrimas salgadas que só o supremo drama humano consegue extrair, e entende, ao acender das luzes, que foi Hollywood que assim o quis. Não fosse assim, teríamos todos gostado dos filmes Poison, ou Swoon, ou mesmo Querelle, que tratam do mesmo tema, com muito mais transparência. Mas o lavar da alma é como a lavagem das escadas do Senhor do Bonfim –não nos interessa quanta bandalheira circunda a região, nos outros dias do ano. Como que saindo de um filme agonizante, caímos na real, e a real tupiniquim envolve sobreviver a qualquer custo, deixando a lisura para um momento de lazer da alma. É quando o Betinho nos comove, para então cair novamente no segundo plano das questões nacionais, já que estamos todos ocupados a escolher entre uns poucos honestos e uns muitos canalhas para nos levar adiante como sociedade. E as pesquisas indicam, claramente, que as opções nos torturam, já que a soma das intenções de votos em bandidos supera bem a dos honestos.
No meio tempo, acham o Lula e o Fernando Henrique oportunistas, que só querem o tal do "puder". Para o que, tirarem a barriga da miséria, encherem os bolsos com contas numeradas na Basiléia? Ora, ora. Com este raciocínio acabamos sempre voltando aos notórios candidatos criminosos que só continuam à solta em virtude de nossa grande tolerância, quem dirá até bem-querer, em relação à bandidagem. Sejamos francos: como país, gostamos de espertalhões e gatunos. Me engana que eu gosto. Passamos no lava-rápido Betinho, e depois voltamos à fonte para achar mais sacanas para nos liderar.
Como elite somos medíocres, e não podemos fazer de conta que não sabíamos quem o Collor era, quem os nossos importantes prefeitos e governadores são. Damos dinheiro a eles por fora, e os cortejamos como se fossem sérios. Só nesta semana vários malandrões foram festejados por empresários e entidades variadas.
Vamos abrir os olhos, e pensar em colocar um espelho no chuveiro –afinal, temos um estoque frágil e limitado de lava-rápidos Betinho, e nossa alma viaja conosco, sujinha deste jeito, por, pelo menos, mais quatro anos.

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