São Paulo, domingo, 13 de março de 1994
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Variações sobre Eça de Queiroz

JOÃO ALEXANDRE BARBOSA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A leitura de um escritor como Eça de Queiroz (1845-1900) está sempre cercada de muitos perigos.
Na verdade, é tão vasta a sua fortuna crítica, é tão divulgado o cânone de recepção de sua obra, que toda leitura (excetuando, é claro, aquela de erudição textual que se
vem fazendo para a edição crítica das obras) termina por parecer repetitiva. Não há por onde fugir: sendo um clássico das literaturas em língua portuguesa, o seu destino, como acontece com os autores clássicos, é antes a releitura.
Deixando de lado o fato de que a releitura é pensada por alguns como traço identificador da própria operação crítica (é o caso, por exemplo, de Matei Calinescu, em livro recente intitulado "Rereading"), é possível dizer que a releitura se impõe, no caso dos autores clássicos, precisamente porque a admissão da releitura aponta para
aquilo que, na obra, está presente, para sempre, enquanto articulação de linguagem e ficção, expressão e imaginário, e o próprio sistema de literatura que ela representa. Por isso, não é preciso ser um eciano contumaz para estar lendo Eça de Queiroz em obras que não são as dele: ser um clássico, para utilizar uma idéia de Italo Calvino, é fazer parte, mesmo in absentia, da circulação sanguínea da literatura.
Por outro lado, no entanto, aquela idéia de representatividade do sistema literário que parece caracterizar esse tipo de obra é, se hipertrofiada, um dos maiores perigos que ronda a leitura. Quer dizer: o de ler, nesta ou naquela obra, os conteúdos de representatividade sedimentados e lidos pela tradição de leitura do autor, esquecendo-se aquilo de que nos adverte Frank Kermode, no ensaio "The Classic", isto é, de que "a sobrevivência do clássico deve depender da posse de um excedente de significante". É precisamente este "excedente", ou "surplus" na expressão de Kermode, que permite a continuidade de leituras, as interpretações diferentes e as ambiguidades que respondem pela perenidade da obra.
Por isso, representatividade não é sinônimo de simetria de representação. O "excedente de significante" trabalha no sentido de criar espaços assimétricos com relação ao tempo de realização da obra de tal maneira que somente em tempos posteriores podem ocorrer transformações que viabilizem a obra como representativa. A história literária está repleta de exemplos e basta lembrar os casos de Góngora, cujo barroco foi relido pelos poetas da geração espanhola a que pertenceu um Dámaso Alonso, ou de Stendhal que, escrevendo para "os poucos felizes", teve de esperar mais de uma geração para ser devidamente apreciado, ou dos chamados "poetas metafísicos" da Inglaterra do século 17 relidos por T.S. Eliot, ou, mais recentemente, os casos de um Rimbaud e de um Lautréamont relidos pelos surrealistas.
São todos exemplos de assimetrias entre representação e "excedente de significante", somente recuperáveis a partir de releituras que decididamente assumiram as
assimetrias, sem buscar reduzi-las através de relações simétricas e apaziguadoras entre representatividade e conteúdos de representação.
Ou, para dizer de outro modo: o que a história da recepção de tais autores terminou por mostrar foi exatamente que aquilo que exigia a releitura era antes uma inadequação entre forma de representação do que uma pacificadora representatividade. A obra é representativa por alterar o sistema com que se articula e não por ajustar-se a ele sem sobressaltos. Existem, está claro, graus de sobressaltos: o
mais alto é aquele que faz com que se condene a obra a uma exclusão do sistema e a mais usual razão para a rasura está em se afirmar que a obra não responde a tais ou quais características que foram estabelecidas como definidoras do próprio sistema literário em suas articulações com o conjunto de traços de espaço e de época que configuram uma literatura.
É, por exemplo, a defesa de um "caráter nacional", de definição sempre muito vaga e fundada em conteúdos de representação dessa ou daquela época, como elemento
decisivo para a inclusão ou exclusão de tal ou qual autor no sistema literário. A inadequação, neste caso, dando como resultado a exclusão do sistema, é efeito de má tradução: como a obra não traduz os conteúdos de um, sempre vago, "caráter nacional", o seu "excedente de significante" é descartado como "excedente" e não incluído como elemento fundamental para a renovação posterior do sistema que somente a releitura poderá vir a viabilizar. Lido sobretudo por seus conteúdos de representação (crítica social, pessimismo, sarcasmo, ironia, etc), ora exaltados como índices da representatividade do escritor, ora como motivos para uma exclusão "nacionalista" e até mesmo "patriótica", tudo dependendo das pressões ideológicas dos leitores, Eça de Queiroz é bem um exemplo do movimento de inclusão e exclusão
nacional". (Uma excelente amostra desse tipo de alternância, pode o leitor ter pela leitura dos dois volumes publicados quando do centenário do escritor, em 1945: "Eça
Relido, entretanto, quando já se aproxima o centenário de sua morte, é possível dizer que o que perdura é antes a tensão entre aquelas leituras alternativas, e que já encontrava expressão em alguns raros ensaios incluídos no volume organizado por Lúcia Miguel Pereira, do que uma hipotética representatividade do escritor. Entre
adequação e inadequação, está o intervalo de criação literária que é a obra de Eça de Queiroz. Creio que a leitura da novela "Alves & Cia", incluída pela Imago em sua
coleção Lazuli, que já havia publicado a obra de Eça de Queiroz que faz parte da seleta "biblioteca personal" de Jorge Luís Borges, "O Mandarim", pode melhor concretizar o que se vem dizendo. Antes de mais nada, no entanto, algumas
observações de ordem editorial.
Esta novela, juntamente com "A Capital!" e "O Conde de Abranhos", recuperadas e publicadas pelo filho de Eça de Queiroz vinte e poucos anos depois de sua morte, parecem ser fragmentos de um projeto, as "Cenas da Vida Portuguesa", de que faria parte também aquela que é, sem dúvida, a grande obra do ecritor, "Os Maias",
publicada em 1888.
obras, agora com textos críticos estabelecidos, existiam edições mais modernas, com melhor recuperação crítica dos textos, realizadas pela brasileira Helena Cidade
Moura e publicadas pela Edição "Livros do Brasil", de Lisboa. A mesma autora foi a responsável pela edição, em 1970, na "Obra Completa" da Edição Aguilar do Rio de Janeiro, da novela "Alves & Cia", cujo texto da primeira edição de 1925 foi por ela reformulado a partir dos originais deixados por Eça de Queiroz.
Nesta edição da Imago, embora se faça referência à edição de 1925, não há qualquer menção à edição de 1970 e o leitor fica sem saber se o trabalho de preparação do texto, que é creditado a Leda Tenória da Mota e Arthur Nestrovski, levou em conta as duas edições ou somente é transcrição fiel da primeira. Creio ser este o caso, embora comparando os dois textos, fui capaz de notar uma única modificação: trata-se da substituição de um verbo –que vem entre colchetes na edição Imago. Ali
onde se lia "entregasse", na edição de 1925, está agora "levasse" na nova edição, tudo ocorrendo no início do capítulo terceiro da novela. Tudo isso poderia parecer simples caturrice editorial não fosse a observação, de enormes consequências para a leitura da novela, feita pela editora de 1970. Diz Helena Cidade Moura, na "Anotação liminar" ao texto: "Preso talvez ao cuidado de dar à história um recorte mais literário, o primeiro editor do manuscrito tornou, a nosso ver, mais difusa a presença de Alves. De fato, o que nos parece ter sido deturpado, nas alterações feitas ao manuscrito, foi precisamente o cuidado extremo que Eça de Queiroz teve em vincar a importância que os 'hábitos' tomavam na organização da vida de Alves e no próprio estruturar do seu pensamento. Expressões chãs, repetições monocórdicas que foram alteradas, pretendiam, julgamos, carregar o clima da vida sem horizontes do comerciante no meio fechado." Na verdade, as repetições, imagens obsessivas que vão e voltam no correr do texto, ruínas que, de repente, substituem a boa ordem, as discrições da vida privada subitamente deslocadas pelos acontecimentos que atraem o público, tudo isso é, por assim dizer, condensado entre os nove capítulos da novela, curtos capítulos de enorme intensidade psicológica graças precisamente aos recursos
protagonista, Godofredo da Conceição Alves, faz com que a sua pespectiva contamine todos os outros elementos que a compõem, personagens, ruas, espaços interiores, objetos, ideologias, noções de moral, etc.
Sendo uma espécie degradada daquele "homem do subterrâneo" de Dostoievski, em que até a sua firma comercial existe sob tetos baixos, num certo tipo de subsolo que a protege contra a invasão pública, Alves, que até então se identificara à Cia. da casa comercial, representada pelo amigo que o trai, Machado é subitamente desestruturado e tem que buscar a sua auto-identificação. É quando, então, aquilo que é estrutura dialogal da novela recebe uma tonalidade de monólogo: seja a obsessão pela vingança (que, num momento extremo, é pensada até como suicídio), seja a obsessão posterior
pela recuperação de Ludovina, a mulher que o trai, tudo faz com que o eixo da novela passe a ser uma inversão de valores. Uma desmontagem dos princípios que fundamentavam a personalidade de Alves que dá, no final, uma remontagem, agora irônica porque degradada, dos mesmos princípios.
Nada fica em pé e tudo fica: não houve vingança da honra nem suicídio, as amizades são recuperadas e, sobretudo, há um enorme progresso na firma Alves & Cia. (que,
um momento de opção pelo suicídio, Alves afasta a idéia pensando que ela poderia vir a se chamar Machado & Cia.). Mas pode-se inverter e dizer que tudo fica em pé e
nada fica: por entre as obsessões de Godofredo, hábitos e valores desmontados, Eça de Queiroz soube encontrar aquilo de que são feitos os sonhos. Isto fica.

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