São Paulo, domingo, 13 de março de 1994
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A utilidade do corpo inocente

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há vinte anos, mais ou menos, Habermas perguntava se as sociedades complexas seriam capazes de formar uma identidade racional de si mesmas. O problema, então,
era saber: primeiro, como os grupos sociais, separados por diferenças de interesses, poderiam aceitar um ponto de vista ético posto acima das diferenças; segundo, como
os indivíduos, descritos como joguetes de forças ocultas –a luta de classes, a evolução das espécies, as leis da economia, as leis da história, as moções inconscientes etc.– poderiam guardar a noção de responsabilidade por suas escolhas humanas.
A reabilitação do valor político na esfera pública, dizia ele, seria a solução. O tempo passou: a questão continua. A política persiste em baixa, os indivíduos se atomizam, os grupos radicalizam seus particularismos e do vazio moral vem emergindo a engenharia humana e a tecnologia dos corpos.
Nos últimos meses, a imprensa publicou sucessivas matérias sobre a determinação genética e o controle psicofarmacológico das condutas humanas. Os chamados "deprimidos" e os supostos "homossexuais" são as estrelas do espetáculo. Os deprimidos, diz-se, são pessoas com distúrbios no funcionamento do neutransmissor conhecido por serotonina; os "homossexuais" são portadores de especificidades genéticas no cromossoma X.
Para os primeiros, já sabemos, PROZAC!; para os segundos, bem, aí varia conforme o gosto de cada um. Os militantes "gays" acham que isso é motivo para reivindicarem respeito moral por suas preferências sexuais; já alguns "heterossexuais" vêem nisso uma boa razão para abortarem fetos com tal "malformação genética".
A tolice beira a insensatez. Só uma cultura sonambúlica é incapaz de ver as consequências desta redescrição científica de nossas subjetividades. Nada, na imagem de sujeito que temos de nós mesmos, é fixo e imutável. Assim como aprendemos a ver-nos como seres que falam e agem segundo intenções moralmente dirigidas
podemos aprender a ver-nos como feixes nervosos que reagem à estímulos mecânicos ou neuroquímicos.
A psicofarmacologia pode muito bem descobrir as drogas que diminuam a "depressão" dos indivíduos; a genética pode determinar qual a origem cromossômica de cada suspiro, grito ou gemido que venhamos a dar. O que nenhuma das duas pode fazer é criar um sujeito moralmente responsável pelo que faz, diz ou sofre, se insistir em desconhecer ou não discutir as razões de nossos feitos, discursos ou sofrimentos. Muitos cientistas sabem disso; a maioria dos ideólogos faz de conta que não. Para estes, a "felicidade" pode ser comprada em pílulas e consideração moral pelo outro é uma questão de arranjo de aminoácidos.
Vou direto aos nove fora! Em que importa saber qual a pretensa singularidade genética de homens e mulheres que sentem atração sexual e amorosa por outros do mesmo sexo biológico? Alguma vez na história os oprimidos conseguiram a benevolência dos opressores reclamando igualdade de tratamento humano, em nome da "naturalidade" de suas características físico-morais!
Só a invenção da dignidade moral da vida e da pessoa, pôde evitar a violência do preconceito baseado em argumentos naturais. Do mesmo modo, faz diferença –e muita– dizer que podemos sentir tristeza por vários motivos e que, em alguns casos, é moralmente aconselhável usar medicamentos para aliviar o sofrimento e dizer que
"depressão" é uma questão de reequilíbrio do metabolismo da serotonina.
A serotonina "não sabe" o que é sentir ansiedade depressiva por conta da concorrência alucinada por dinheiro e poder; por que se perdeu a pessoa amada; por que se é vítima de preconceitos raciais, sexuais, étnicos etc. ou por que supomos a existência de um eventual distúrbio neuroquímico, causa da depressão imotivada. Todos são casos de "depressão"; todos possuem causas e razões completamente diversas, que pedem intervenções diversificadas. Inventando a idéia de que existe "um deprimido" ou "um homossexual" criamos ficções teóricas que, em seguida, tornam-se realidades humanas. Um dia, para os que não sabem, a psiquiatria criou "regicidas", "loucos morais", ou "criminosos natos" reconhecíveis pelo rosto, pelo tamanho do crânio, pelo peso do cérebro e tudo isto "cientificamente comprovado".
Tais idéias caducaram e nenhum ganho moral surgiu dessa definição do sujeito enquanto realidade biológica. Hormônios e genes não criam valores. Não sabemos o que é sofrer porque conhecemos a físico-química da serotonina; temos interesse no conhecimento da serotonina por que sabemos o que é sofrer. Da mesma maneira, só temos interesse em conhecer "genes de homossexuais", porque discriminamos moralmente pessoas que amam outras do mesmo sexo biológico. Sem isso, essa pesquisa seria absolutamente inútil e sem sentido. A inocência moral de nosso corpo só é útil aos que nos percebem como relés no circuito das mercadorias. Já nos ensinaram que somos objetos consumidores de outros objetos; agora começam a ensinar como nossos sentimentos são fabricados e quais são os armazéns de peças de reposição. É preciso mais do que cadeias genéticas e antidepressivos para fazer homens responsáveis por seus atos morais.

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