São Paulo, domingo, 13 de março de 1994
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Guerra entre bactérias preserva os intestinos

MARCELO LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

Guerra e elegância não costumam andar aos pares, mas cientistas do Laboratório de Gnotobiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) conseguiram reuni-las para enfrentar a principal causa de mortalidade entre recém-nascidos no Brasil, a diarréia. No mundo da pesquisa, costuma-se qualificar como "elegantes" as soluções simples e iluminadoras. É difícil encontrar adjetivo melhor para descrever a idéia de derrotar os germes que causam a diarréia obrigando-os a combater seus próprios semelhantes.
Vilões e mocinhos desta história com final feliz –os pesquisadores conseguiram impedir a diarréia em 25% das crianças– pertencem à mesma espécie, a da bactéria Escherichia coli (ou E. coli). É uma das mais comuns entre as 300 ou 400 espécies que colonizam as entranhas de adultos humanos, compondo a chamada flora intestinal. Todo ser humano carrega uma população de E. coli entre os 100 trilhões de bactérias de seu tubo digestivo.
Normalmente, elas não representam perigo. Algumas linhagens, porém, podem provocar diarréias, pois produzem substâncias irritantes chamadas de toxinas. Em bebês, especialmente os de países mais pobres, podem trazer complicações e até a morte: 25% a 30% dos óbitos por diarréia são de responsabilidade de E. coli.
As crianças vêm ao mundo desprovidas de flora intestinal. Começa então uma espécie de loteria nas suas barrigas, cujo comportamento vai depender em grande parte das espécies e linhagens de bactérias que iniciarem a colonização. Se entre os primeiros exemplares que recebe do exterior estiverem linhagens não-patogênicas, sorte –a chance de uma diarréia é menor.
O microbiologista francês radicado no Brasil Jaques Nicoli, 44, explica que algumas linhagens inofensivas são também "antagonistas" das mais ameaçadoras. O que ele e seu grupo fizeram foi selecionar 102 bebês nascidos em Belo Horizonte e dar para metade deles (o grupo experimental), duas horas após o parto, uma dose de aproximadamente 1 milhão de E. coli de uma linhagem comprovadamente inócua (faltava-lhes uma peça fundamental na maquinaria genética das agressoras, os plasmídios). As outras 51 crianças do grupo de controle foram inoculadas com a mesma quantidade de bactérias, só que mortas. Todas as 102 tinham nascido de parto normal.
O acompanhamento clínico, realizado durante um ano, revelou que apenas 48% das crianças do grupo experimental tinham apresentado diarréia, contra 73% do grupo de controle. Segundo Nicoli, houve uma falha no estudo que tornou impossível estabelecer quais espécies de bactérias provocaram as diarréias. Como a porcentagem de crianças protegidas corresponde aproximadamente à participação da E. coli nas diarréias em geral, Nicoli diz que obteve uma "indicação", não uma "prova", de que as bactérias inoculadas mantiveram afastadas as E. coli patogênicas.
"Não estamos inventando nada, só tentando favorecer o que acontece naturalmente", diz Nicoli. Ele admite que não se sabe ainda como se dá esse processo de competição entre as linhagens, muito menos por que as E. coli inofensivas vencem a disputa pela ocupação do ecossistema intestinal.
Uma hipótese, levantada pelo pesquisador francês Pierre Raibaud (um dos nove co-autores do trabalho de Nicoli, aceito para publicação pela revista alemã "Microecology and Therapy"), é a de que as E. coli usadas têm um componente a menos a duplicar –os plasmídios– na hora de reproduzir-se. Isto permite economia de energia, em tese, e portanto uma reprodução mais eficiente e rápida. Ou seja, têm uma espécie de vantagem "ecológica".
Qualquer que seja o mecanismo de antagonização, não há dúvidas quanto à sua existência. Sabe-se até que ela ocorre também entre espécies diferentes. Portanto, quanto maior for a biodiversidade intestinal, menor é a chance de que a pessoa –adulto ou criança– venha a padecer com diarréias de origem bacteriana. Nicoli e seus colaboradores na UFMG querem agora identificar os antagonistas de outras bactérias, inclusive do vibrião do cólera. Se continuar dando certo, a microecologia pode se tornar um manancial de terapias alternativas à faca de dois gumes dos antibióticos –que debelam as infecções agudas, mas favorecem o surgimento de linhagens resistentes.

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