São Paulo, terça-feira, 15 de março de 1994
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Brasil precisa viver seu complexo de Édipo

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Consciência social de brasileiro é medo da polícia". Esta frase do sempre presente Nelson Rodrigues explica bem o nosso escândalo com a falta de patriotismo da chamada "lumpemburguesia", como bem nomeou o jornalista Márcio Moreira Alves. A "lumpemburguesia" (correlata do termo marxista "lumpemproletariado") é a classe herdeira de séculos de patrimonialismo, que encara o país como um quintal a explorar.
Agora, estamos talvez passando de um período patrimonialista para os primeiros albores de um capitalismo. Não que o capitalismo seja um sistema mais solidário, mas nele há um pouco mais do sentido "frio" da vida, um pouco mais de consciência pública do que na "cordialidade" corrupta dos filhos de degredados brasileiros. Esses degredados são a raiz da lumpemburguesia que se protege no papel do Estado e como classe. Como vão punir a si mesmos?
Neste sentido, o Plano FHC teve uma brilhante estratégia: frustrou as expectativas autoritárias que o brasileiro sempre teve. Escreve Sérgio Buarque, em "Raízes do Brasil": "Nas nações ibéricas sempre predominou um tipo de organização política artificialmente mantida por uma força exterior que, nos tempos modernos, encontrou uma das suas formas características nas ditaduras militares".
Esta era a expectativa da "lumpemburguesia". Queria um autoritarismo histérico, fácil de cooptar, e que a inocentasse de responsabilidade.
Sorriso de mãe
FHC era esperado como pai castrador e atacou de mãe sorridente. Esperavam dele um choque e ele lançou a idéia de processo. Mais que um plano, FHC está ensinando ao país que existe uma responsabilidade civil a ser assumida por todos e que a idéia ibérica de lei, como raio autoritário, tem de ser revista. A lei, seja em psicanálise ou em política, tem de coexistir com o desejo. Ou seja, não é uma punição que se abate, mas um limite à desordenada marcha das pulsões contra a organização da vida social.
A lei não existe para banir o desejo, mas para torná-lo possível para o animal humano. Assim, não há desejo sem lei. O Brasil vive ainda um vago sonho matriarcal, uma medíocre visão de um paraíso de permissividade, onde tudo pode ser feito, numa vagabunda noção de liberdade orgiástica. Essa é uma visão antiga de ser livre, o livre como perda de todos os limites, o livre como negação rasgada dos intercursos sociais.
Este "livre" e uma mímica histérica de instintos animais idealizados, uma leitura ridícula da idéia de sociedade. Até na arte essa idéia é antiga. Mas, isso é outro tema a ser abordado. Tão notória é a idéia de que o Brasil é uma "zona" franca, que as próprias multinacionais, quando se mudam para cá, abandonam seu passado calvinista e caem na gandaia, como aqueles gringos que vêm dançar no carnaval de fio-dental. Basta ler seus manuais para o Brasil, com lições de corrupa. A lei tem de existir dentro da democracia. Tem de haver um amor ao outro dentro da idéia de liberdade individual (estou soando como pastor calvinista, mas é isso aí...)
O burguês inercial
O Plano FHC inaugurou uma fase de "economia psicológica". Que diabo é isso? Teria quase o mesmo efeito que a idéia de "equivocação", do "corte" lacaniano numa interpretação em psicanálise. O médico "corta" o discurso doente com uma nova palavra.
Assim como existe uma inflação inercial, existe o "burguês inercial". Ou seja, é necessário "cortar" a secular expectativa reacionária para modernizar o próprio reacionário. Nossa direita tem de evoluir como direita. Exemplo bom foi dado pelo Gilberto Dimenstein outro dia, dizendo que não ocorre ao "lumpemburguês" que o sucesso do Plano FHC é essencial para barrar o Lula. Querem barrar o Lula, mas não resistem à baba maldita do escorpião remarcador de preços.
Uma estrutura política é fruto de uma infra-estrutura econômica (lição marxista nº 1). Mas, uma estrutura econômica também se influencia pela lógica de uma estrutura política, e mais fundo ainda, há uma economia derivada do secular e ancestral desejo nacional. Há um "inconsciente econômico" nos países. E o inconsciente econômico brasileiro é superneurótico. Precisamos entender a economia do desejo do brasileiro, feito de cobiça, impiedade, preguiça, egoísmo. Há um trauma sexual secular que prefigura uma economia manca e inercialmente burra (porque autodestrutiva) que tem de ser desfeito. Não se trata de mudar regras econômicas. Temos de mudar a cabeça econômica do país, para entrar na nova lógica do capital.
Há um desejo internacional do capitalismo de integrar esta terra atrasada a um modo de vida menos ridículo, até mais "cruel" (de cru, de real); melhor dizendo, integrar o Brasil a uma crueldade mais moderna, a uma lógica de circulação de mercadorias menos vagabunda. O que choca o mundo é nossa crueldade arcaica, é nossa tragédia de quinta categoria, como chocava os ingleses nosso atraso na libertação dos escravos.
Repassando ao Congresso a co-responsabilidade (com a infinita paciência dos conchavos), surpreendendo os oligopólios com o diálogo, o Plano foi criando uma nova prática política. A idéia de FHC foi boa: uma homeopatia de "cordialidade" com o "homem cordial"; com o veneno se desfaz o veneno. Assim, o Plano FHC repassou para a sociedade, com sorrisos, a responsabilidade de escolher um destino, mesmo que seja a tragédia. Foi a "fase-mãe" do Plano.
A "fase-pai"
Agora, está na hora da "fase-pai"
É muito tênue a noção de punição no patrimonialismo. Como punir "iguais"? Punir negro fugido é fácil, está no sangue. Punir os chefes, isso dói no carrasco-cordial. O punidor se sente ameaçado pela lei. Vejam a dificuldade do Congresso, tão belamente descrito pela grande Hebe, em punir seus queridos ladrões.
No Brasil, democracia é confundida com acomodação. A ditadura seria malvada; a democracia seria "boa". Democracia seria "moleza". A ditadura, "dura". Democracia é mulher; ditadura é homem.
A verdade é que a ditadura abole a lei, como a "democracia" falsa também abole. São faces de uma mesma ausência de lei. A ditadura tira nossa responsabilidade, a democracia sem lei a desmoraliza. A fase "mãe" do Plano foi boa, mas, agora, sinto que cresce no país uma descrença quanto à virilidade do Estado. O Governo está com medo de punir. Por delicadeza pode perder a vida.
Qualquer tentação de pulso forte nos culpabiliza e retrai, para não sermos chamados de fascistas. Como isso? O Presidente é comandante supremo das Forças Armadas e, se quiser, pode chamar até o Exército, limpidamente, para controlar supermercados. Por que não? Até quando o Exército vai ficar jogando basquete nos quartéis, esperando a invasão inimiga? O Governo tem de exercer poder de polícia, punir, prender. Isto é profundamente democrático. Não é preciso elidir a democracia para punir. A lei é bifronte, ela delimita o possível. A ditadura não é lei; é a negação dela. Quem se ampara na impunidade "cordial" da democracia são os vagabundos a que Hebe se refere.
Para se educar uma criança, precisa-se da "fase-mãe", mas precisa chegar o pai, um dia, e criar o ser social, a culpa, impedindo o incesto. Sem pai, ficamos psicóticos. O país também. O Brasil precisa fazer seu complexo de Édipo.

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