São Paulo, quarta-feira, 16 de março de 1994
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Heroísmo e ensino público

ROSELI FISCHMANN

Em artigo publicado pela Folha no último dia 2, ao queixar-se que muitos dos professores e pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) parecem "não enxergar o seu próprio quintal", o professor José Eli da Veiga ignora críticas que se fazem à universidade, indicando que é justamente o fato de olhar demais para o próprio quintal que tem acarretado distanciamento entre o mundo acadêmico e a sociedade que o mantém.
Se a intenção é a autocrítica, em si saudável, da universidade, não podemos invocar, ao mesmo tempo, o medo da sociedade. Em que pesem as intenções do articulista, isolar o campus fisicamente, evitando o trânsito, ou pressupor a criação na USP de um mundo justo e equilibrado, independente e alheio às condições gerais da sociedade, são propostas que soam a laboratório controlado, asséptico, nem sempre condizente com a realidade.
A aspiração de que "nossos heróis, os alunos mais pobres, possam largar seus empregos e se dedicar exclusivamente aos estudos" indica outra tentação de isolamento. Para algumas carreiras, o contato com profissionais da área é absolutamente fundamental e, embora seja verdadeira a necessidade de equacionarmos melhor esses vínculos entre formação acadêmica e trabalho, definindo melhor o papel do estágio, advogar a dedicação "exclusiva" aos estudos pode não ser a saída.
É interessante observar, também, como, em nome da defesa dos pobres, o articulista aponta como solução que se cobre "dos ricos" para "robinhoodianamente" dar aos que não têm. A definição de políticas públicas deve voltar-se para o interesse maior da população, do qual passa longe essa criação estigmatizada de três tipos de estudantes: "mauricinhos-patricinhas", "estudantes propriamente ditos" e "pobres". Nas salas de aula devem haver alunos –sem qualquer adjetivação.
O ataque ao ensino superior gratuito também foi objeto de artigo recente de José Carlos de Azevedo, nesta Folha, onde o ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB) lamentavelmente destilou preconceitos contra negros, índios, "ignorantes", "sem virtudes", "estudantes caras-pintadas".
Alguma coisa os dois autores têm em comum no ataque ao ensino público e gratuito. Ao invocarem argumentos que se prendem a estereótipos, acabam por atingir a opinião de setores da sociedade que são, como os próprios articulistas, prisioneiros do mito do ensino superior pago. Mito falacioso, porque valores apurados com essa cobrança seriam irrisórios frente às necessidades de pesquisa, dispendiosas, porém indispensáveis para os interesses da sociedade.
Que façamos na USP nossa autocrítica é ótimo. Melhor ainda, porém, que seja bem direcionada, particularmente em um momento como este, em que se inicia uma nova gestão, início que tem sido auspicioso pelo firme posicionamento de nosso atual reitor, professor Flávio Fava de Moraes, em defesa do ensino superior público gratuito unindo-se à luta histórica das entidades representativas de professores, funcionários e alunos da USP. Início também de uma nova fase para os estudantes que se reuniram no "Trote pela Cidadania", inversão histórica na recepção dos calouros, antes marcada pela violência.
São novos tempos que exigirão de todos nós que sejamos um pouco "heróis", na avaliação sincera dos resultados, na análise acurada e serena de nossos processos, na reestruturação de nossos desempenhos, na busca de uma USP renovada, colaborando efetivamente para uma sociedade em reconstrução.

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