São Paulo, quarta-feira, 16 de março de 1994
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Os anões e os metafísicos

RENATO LESSA

País peculiar, o Brasil acrescenta um novo absurdo à sua extensa galeria de bizarrias institucionais. O processo de revisão constitucional tem como referência ordenadora uma "agenda mínima", que inclui nada menos do que a alteração dos mecanismos de representação política, através da pretendida implantação de um sistema eleitoral idêntico ao adotado na Alemanha (país, como se sabe, com fortes afinidades históricas e culturais com o Brasil).
Essa interessante modalidade de minimalismo maximalista ainda não recebeu a necessária consideração crítica. Na verdade, seus adeptos –sobretudo intelectuais e políticos paulistas– têm sido pródigos em olímpicas afirmativas quanto à indisputada superioridade de suas superstições institucionais. Essa arrogante unilateralidade foi rompida pela professora Maria Hermínia Tavares de Almeida em artigo publicado nesta página no dia 15 de fevereiro último ("Os anões e seus aliados"), que distingue com sua competente crítica um pequeno artigo meu, aqui também publicado ("Reserva de mercado para anões", 5/02).
Tal como em outras defesas do sistema "distrital misto", a argumentação parte de duas premissas cuja veracidade é tida por indisputada: "a mudança do sistema eleitoral é um ponto importante da agenda de reformas políticas" e "uma reforma bem feita" –isto é, a introdução do sistema "distrital misto"– poderá melhorar a qualidade da representação política. Nesse sentido, é crucial perguntar: por que a mudança do sistema eleitoral é um ponto importante da agenda de reformas e qual a relação entre sistemas eleitorais e a "qualidade da representação política".
A primeira pergunta pode ser respondida de acordo com o realismo acaciano: a mudança do sistema eleitoral é parte importante da agenda porque faz parte da agenda. Mas tratando-se de um juízo de valor, a saída acaciana, mais do que realista, é simplesmente cínica. Na verdade, o que se está dizendo é que a reforma do sistema eleitoral deve fazer parte da agenda de reformas. Portanto, cabe perguntar: que evidências são capazes de condenar sumariamente nossa tradição proporcionalista, que agente intelectual ou político iluminado tem a prerrogativa de conhecer o que "realmente está em pauta" e selecionar entre os inumeráveis sistemas eleitorais em uso no planeta aquele que consolidará a democracia brasileira?
Mais grave do que confundir fato e valor é propor um nexo causal entre sistema eleitoral e qualidade da representação. Difunde-se hoje no país a crendice de que a alteração no sistema eleitoral nos proporcionará um Legislativo produtivo, de melhor qualidade e com representantes dotados de taxas menores de raquitismo moral. A difusão desse mito desconhece um aspecto fundamental: os sistemas eleitorais são procedimentos de transformação de votos em cadeiras, e não artifícios mágicos de elevação da moralidade pública e da produtividade parlamentar. Há excelentes parlamentares tanto em sistemas eleitorais majoritários como em sistemas proporcionais.
A qualidade dos representantes deriva da combinação de dois fatores precisos: a oferta de representantes e as preferências dos eleitores. Se alguma relação existir entre qualidade dos representantes e sistema eleitoral, ela nos prescreveria que a redução na oferta de representação –inevitável no sistema "distrital misto"– não garante a melhoria da qualidade: quem poderia sustentar que as barreiras à entrada excluiriam os piores? Mais importante do que isso: quem determina quem são os piores?
É, portanto, possível supor que o aumento da oferta de representação –prerrogativa exclusiva de sistemas proporcionais– permita que o eleitorado defina quem deve ser excluído. O argumento dos doutrinários distritais mistos pode, com legitimidade, ser invertido: o sistema proporcional, ao permitir uma elevada oferta de representação, cria condições mais favoráveis para que o eleitor manifeste suas preferências.
Os distritalistas mistos com frequência operam com raciocínios monocausais. Para eles a alteração no sistema eleitoral deve ser compulsória, para garantir a produção de maiorias parlamentares. Não há evidência capaz de sustentar que as democracias proporcionalistas são ingovernáveis. Alterações nas regras de interação entre partidos e entre as bancadas, tais como a introdução de mecanismos de fidelidade partidária e fim ou regulação de coligações eleitorais para o Legislativo, certamente poderiam criar um cenário mais propiciador de coalizões efetivas. Com certeza é importante diminuir a fragmentação e fortalecer os partidos, mas parece não haver nenhuma relação de necessidade entre essas prudentes prescrições e o abandono do sistema proporcional. Trata-se de um "non sequitur".
Além de monocausais, os distritalistas mistos não distinguem contiguidade e causalidade. Procedem a partir de um pseudosilogismo, que pode ser decomposto nas seguintes proposições: se o sistema eleitoral é proporcional e se há anões no Congresso, logo os anões são produto do sistema proporcional. O sistema proporcional não elimina a possibilidade de escolhas "distritais". Anões são, predominantemente, representantes de grotões, e será interessante em uma eventual votação de uma emenda distritalista mista analisar o comportamento dos deputados de base local.
Minha suposição é a de que parlamentares localistas constituem uma das três bases de sustentação da coalizão ariana. Outra base é definida por políticos e intelectuais ideológicos, movidos por uma ética de convicção precisa: eles estão convencidos da necessidade de reduzir não apenas as margens de competitividade política, mas o próprio espaço público: menos Estado, menos partidos, menos cargos em disputa eleitoral, menos eleitores.
A terceira vertente da coalizão distritalista mista, composta por intelectuais e políticos de insuspeita extração democrática, não pode ser confundida com as precedentes. Suspeito da presença de uma adesão a um hiperinstitucionalismo metafísico, movido por um ânimo que Hayek designaria como construtivista. Trata-se da crença de que o correto uso da razão, sustentado pela superior capacidade de saber o que realmente está em pauta, é capaz de definir o mapa institucional da modernidade política. Assim poderiam ser compreendidas propostas tais como a recente sugestão feita por intelectuais paulistas de adoção da cédula australiana para eleição presidencial e o próprio fascínio pelo sistema eleitoral alemão.

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