São Paulo, quinta-feira, 17 de março de 1994
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'Olho no Olho' mistura futurismo tecnológico com fetichismo primitivo

JOSÉ PAULO PAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando você mistura numa tigela pedacinhos de frutas variadas, faz uma salada de frutas. Quando você gruda recortes de jornal numa tela, tem uma colagem. Ora, muito bem: se pela variedade de ingredientes que entram na composição de sua trama, a atual novela das sete na rede Globo tem muito de salada, a circunstância de esses ingredientes serem material já visto ou já lido por boa parte dos espectadores não deixa de fazer dela também uma colagem.
Quem está se dando ao trabalho de acompanhar a referida novela, que ora entra na fase de água morna, não deve ter tido maiores dificuldades em identificar a origem dos disparatados materiais de cuja colagem é feita a sua trama. Da nossa história política mais recente veio-lhe o tema da corrupção política e da fraude previdenciária. Do cinema de horror, a figura do exorcista a combater forças diabólicas que ameaçam apoderar-se do mundo, naquele maniqueísmo de mocinho x bandidos sem o qual não há filme que emplaque em cinema ou loja de vídeo. Da crescente voga esotérica que continua a enriquecer a mancheias autores, editores e espertalhões de toda espécie, o álibi da parapsicologia para dar uma aura de responsabilidade científica a crendices e manipulações mágicas cujas raízes se perdem na noite dos tempos.
O entrecho da novela, cheio de desvios tragicômicos e de complicações sentimentais, como é de praxe no gênero desde os dias do romance folhetim, põe em cena dois paranormais –um mauzão, o outro bonzinho. Este não nos vai interessar aqui; nosso negócio é com aquele, quando mais não fosse por que os demônios têm sempre mais a oferecer do que anjos, embora cobrem mais pelos seus serviços. Para edificação dos leitores que não assistam à novela, convém explicar que o paranormal mauzão faz parte e está a serviço de uma corrupta e poderosa família que os roteiristas tiveram a infeliz idéia de chamar de Zapata. Esse sobrenome lembra de pronto Emiliano Zapata, líder camponês da Revolução Mexicana cuja legenda de herói serviu ainda há pouco de bandeira para os insurretos zapatistas da província de Chiapas na sua luta contra o poder oligárquico e a expoliação dos índios.
Mas, deixando de lado a infelicidade do sobrenome, o que importa acentuar é que os poderes desse Zapata mauzão extravasam o campo supostamente verossímil da paranormalidade para invadir os domínios da mais descabelada sobrenaturalidade. Ele não só consegue localizar mentalmente o paradeiro de qualquer fugitivo, por mais bem escondido que esteja, como sabe tudo o que se passa na cabeça das pessoas, além de conseguir hipnotizá-las à distância e levá-las cegamente à própria destruição.
Para realizar essas proezas, nosso paranormal conta com duas espécies de ajuda. Primeiro, a ajuda de uma imagem em metal de uma antiquíssima divindade maligna vinda dos Andes, da região de Machu Pichu. Com isso, os roteiristas da novela, num louvável assomo de pan-americanismo, deram nacionalidade incaica ou pré-incaica à estatueta oriental de "O Exorcista " (ou seria de "A Profecia"?) em que visivelmente se "inspiraram".
Todavia, os poderes da estatueta maligna de pouco valeriam sem a ulterior ajuda de um sofisticado aparelhamento eletrônico à base de computadores e telas de vídeo que, acoplado aos olhos e às faculdades paranormais do seu operador, possibilita-lhe fazer o diabo a quatro. Tal locução proverbial, convenha-se, está mais do que apropriada num contexto maniqueísta como o que ora examinamos.
Na sua esdrúxula simbiose de tecnologia de ponta com o fetichismo mais primitivo reside, sem dúvida, o aspecto relevante da novela –se me perdoam o trocadilho involuntário– em tela. Relevante porque sintomático de algumas das características de base do imaginário contemporâneo. Mais especificamente, do imaginário brasileiro de hoje, ou, melhor ainda, do imaginário da nossa classe média mais ou menos abonada. Como ninguém ignora, é para o poder aquisitivo dessa apetitosa fatia do mercado de consumo que se volta gulosamente tanto a tática de merchandising quanto de programação recreativa da Globo, uma praticamente indistinguível da outra.
A confiança da classe média brasileira na racionalidade científica de cuja tecnologia de ponta lhe vêm símbolos de status como o telefone celular e o vídeo-laser não impede sua crença na irracionalidade de técnicas mágicas que vão das curas espirituais aos florais de Bach, dos baralhos de tarô aos mapas astrológicos, do passes de médium aos despachos de pais-de-santo. Daí o acerto da estratégia fetichista-tecnológica da novela global das sete.
Uma estratégia que tal não é diversa, em essência, da adotada por um escritor brasileiro de fulgurante sucesso comercial nos últimos tempos. Um sucesso cujas raízes sociológicas foram esmiuçadas por Mário Maestri num interessante artigo acerca do que chama de neomágica ou neofeitiçaria dos livros de Paulo Coelho. Como na nossa novela das sete, haveria nesses livros uma "feliz modernização" e "nacionalização" de temas da "ideologia mágico-tradicional, na sua vertente européia".
Segundo Mário Maestri, Paulo Coelho "inaugurou entre nós a feitiçaria yuppie" com bruxos "de sucesso, sedutores, modernos" e bruxas cujas compras "revelam um sofisticado bom gosto", uns e outros e circularam a seu bel prazer pelo Primeiro Mundo, para gáudio do "imaginário arrivista e fantasioso do brasileiro de classe média".
Gaúdio que começa a ser partilhado pela classe média de outros países para cujas línguas os livros desse invejado autor de best sellers estão sendo ou já foram traduzidos. E quem sabe não chegue logo aos vídeos primeiro-mundistas a novela inspiradora destes comentários? Pois, num como no outro caso, aplica-se à perfeição o velho ditado de que, lá como cá, más bruxas há.

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