São Paulo, quinta-feira, 17 de março de 1994
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Aumento abusivo ou preço abusivo?

TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR

"Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e de serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros" (ementa do acórdão do Supremo Tribunal Federal de 3/03/93).
Esta decisão do Supremo Tribunal Federal deixa claro que a figura do aumento abusivo de preços, em termos de aumento arbitrário de lucros, tem base constitucional, bem como a consequente intervenção do Estado por via legislativa. A tradição brasileira, contudo, no que se refere a preços, sempre tratou confusamente duas questões distintas que hoje voltam à tona, nestes tempos de URV: o direito da concorrência e os chamados "crimes contra a economia popular".
A coibição do aumento abusivo de preços, na defesa da livre concorrência, tem por escopo imediato o chamado abuso de posição dominante. Nesta posição está a empresa que, num determinado mercado (relevante), atua sem concorrência ou sem concorrência decisiva, tendo em relação às demais uma situação privilegiada por força de sua potencialidade financeira, sua facilidade de acesso aos fornecedores etc. A posição dominante pode ocorrer tanto em mercados diversificados quanto nos oligopolizados.
Uma das formas de abuso de posição dominante é a imposição de preços, de venda ou de compra, na suposição de que esta imposição não surtiria efeito se houvesse uma efetiva concorrência. Esta suposição pode ser avaliada comparando-se o comportamento de preços de produtos sucedâneos ou dos mesmos produtos em outros mercados ou pelo comportamento da própria empresa dominante quando atua em outros mercados em que há concorrência. O abuso de poder econômico, portanto, não está no preço nem no tamanho do aumento, mas na imposição cogente e irresistível do aumento, ferindo a liberdade dos agentes.
Assim, a proteção da livre concorrência, que suporta como um fato a existência de empresas em posição dominante, não aceita que, nas relações entre os agentes econômicos, a empresa dominante abuse de sua condição.
A questão é distinta quando falamos em aumento abusivo de preços, pensando na economia popular, isto é, no consumidor conforme o Código do Consumidor. Aqui o escopo imediato da coibição está no preço abusivo, no seu caráter excessivo em face do interesse social, isto é, em face da fragilidade do consumidor que, coagido pela necessidade, precisa do produto ou serviço e não tem como adquiri-lo ou o adquire com altos custos pessoais, não importa se em um mercado fortemente concorrente ou de baixa concorrência. Nesse caso, o objeto da proteção jurídica é, por assim dizer, a capacidade aquisitiva do consumidor e não, como no caso anterior, a liberdade de concorrência.
Não se nega que uma forma de abuso possa interferir na outra, sobretudo que uma empresa em posição dominante possa explorar, direta ou indiretamente, seus consumidores ou destinatários finais. Mas a exigência constitucional de garantir a concorrência e o consumidor, no plano normativo, leva a medidas diferentes. A desconsideração dessas diferenças, contudo, sobretudo em situação de alta inflação, produz os terríveis equívocos que foram vividos em todos os planos heterodoxos brasileiros.
Planos de estabilização econômica, pelo seu caráter emergencial, costumam envolver discussões relativas à proteção das partes socialmente mais frágeis nas relações econômicas. Daí as brigas em torno da justiça distributiva nos salários e no consumo e as consequentes medidas do tipo "gatilho", tabelamento, congelamento etc. Tais medidas, juridicamente, dizem respeito à economia popular nos processos de transição para uma economia mais estável.
Já as questões referentes à concorrência, no que diz respeito a preços, envolvem problemas de justiça comutativa entre os agentes, exigindo medidas emergenciais que, ampliando a concorrência, diminuam as relações de dependência entre eles. Do ponto de vista jurídico, a mudança nas alíquotas de importação é uma delas. Mas a punição ao preço abusivo não o é. Como uma lei antitruste não pune excessos quantitativos, mas comportamentos qualitativamente arbitrários, ela não serve para estabilizar a economia (baixa a inflação), mas para fazer com que uma economia estabilizada funcione bem.
Ou seja, em momentos de urgência e emergência, mandar prender especuladores, proibir margens abusivas de diferença entre preço e custo, exigir justificativas perante câmaras setoriais, podem ter algum sentido imediato na proteção da economia popular (e no combate a curto prazo da inflação acelerada), mas usadas para garantir a livre concorrência são remédios que matam o doente.

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