São Paulo, quinta-feira, 17 de março de 1994
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Livro leva à frenética Paris dos anos loucos

Escritor norte-americano retrata a década de 20

FEDERICO MENGOZZI
FREE-LANCE PARA A FOLHA

A festa acabou, mas os fantasmas estão aí, assombrando museus, puxando os pés da crítica, pairando sobre a história do século 20. Entre o fim da Primeira Guerra (1918) e a quebra da Bolsa de Nova York (1929), ou entre a morte do pintor e escultor italiano Amedeo Modigliani (1919) e a do empresário russo Sergei Diaghilev (1929), 50 mil norte-americanos e milhares de cidadãos de outras nacionalidades fizeram de Paris uma festa, como reconheceu um de seus mais célebres convivas, o escritor Ernest Hemingway. É essa época de "farras frenéticas" movidas a dólar que William Wiser recupera em "Os Anos Loucos – Paris na Década de 20".
Para Wiser, um romancista americano que há muito mora na França, o que se viu na foi uma rara conjunção de alegria de viver, inquietação cultural e poderio econômico, fatores nem sempre harmônicos. Um trinômio burguês, já que as classes que fizeram as revoluções de 1830, 1848 e 1870 continuaram à margem, servindo de bucha de canhão e preparando forças para voltar em 1934, 1944 e 1968. O fim da "guerra para acabar com todas as guerras", escreve Wiser, encontrou os Estados Unidos como a maior potência industrial do mundo e a França arruinada. "No dia em que os jornais anunciaram o aumento do pão, 1.º de janeiro de 1920, o dólar estava valendo FF 26,76 –uma única nota das 'verdinhas' dava para comprar pão para o mês inteiro..."
Paris contornava dificuldades como desemprego e inflação e exibia a face cosmopolita e majestosa moldada pelo barão Haussman na segunda metade do século passado. "Uma modesta mesada vinda de casa daria para bancar um americano em Paris pelo que parecia ser para sempre", diz Wiser. E mesmo não-americanos, como o irlandês James Joyce, que foi à capital francesa no começo de 1920, para passar duas semanas, e acabou ficando 20 anos. "Não é fantástico", confessou, "como eu entro numa cidade descalço –na verdade, com um imundo par de tênis– e acabo num apartamento de luxo?" Para Joyce, em plena concepção de "Ulisses", publicado em 1922, "mesada" deveria ser substituída por "mecenato".
Como ele, outros personagens que povoam a história do século povoavam a cidade do século –até que, em ordem mais ou menos cronológica, Berlim, Londres, Nova York e Tóquio também mostrassem o seu valor. Os anos loucos foram poucos para tanta gente que brilhava.
Em Paris levavam suas vidinhas antológicas pessoas do porte de Josephine Baker, Sylvia Beach, Samuel Beckett, Constantin Brancusi, Georges Braque, André Breton, Coco Chanel, Jean Cocteau, Colette, E.E.Cummings, John Dos Passos, Marcel Duchamp, Isadora Duncan, T.S. Eliot, F. Scott Fitzgerald, George Gershwin, Vaslav Nijinski, Pablo Picasso, Cole Porter, Ezra Pound, Erik Satie, Igor Stravinski e um longo etc. E a escritora norte-americana Gertrude Stein, para quem uma rosa era uma rosa e Paris não menos que um roseiral ao qual impunha as regras de seu jogo estético-mundano.
Era Gertrude Stein quem chamava a atenção de Picasso, acusando-o de não ter estimado realmente o pintor espanhol Juan Gris, cubista até a morte, em 1927. Garantia que os judeus só deram três gênios originais: Cristo, Spinoza e ela. O contra-ataque vinha pesado, pela boca de Matisse –"ela não entendia nada de arte"– ou de Braque –"para alguém que posa de autoridade, convém dizer que ela nunca passou do estágio de turista". A desfazer essas palavras estava o fato de ter sido Gertrude Stein uma das primeiras pessoas a comprar e promover Matisse, Picasso e Braque –e também Gris, a quem dedicou "The Life and Death of Juan Gris".
"Os Anos Loucos" sistematiza, com suas infinitas histórias e recorrências, um período perdido em referências literárias. Hoje cerca de 50 mil norte-americanos vivem na cidade e fazem uma festa regada a Aids e Coca-Cola. Mudou o Natal, mudaram as pessoas, mudou até a imagem daqueles ianques generosos e ingênuos que vieram para colocar lenha na fornalha que levou a locomotiva cultural a um de suas mais altas montanhas.

"OS ANOS LOUCOS – PARIS NA DÉCADA DE 20", de William Wiser, tradução de Leonardo Fróes. José Olympio Editora (021-551-0642), 252 páginas, CR$ 11.779.

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