São Paulo, sexta-feira, 18 de março de 1994
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Estabilização colonial

ROBERTO MANGABEIRA UNGER
SENHORES SENADORES E DEPUTADOS:

1) A estabilização proposta pelo ministro da Fazenda reconhece que é preciso coordenar os calendários da indexação antes de ancorar uma nova moeda numa referência que a estabilize. Parte da premissa incontestável de que, sem enfrentar o desacerto entre receita e despesa públicas, não há política antiinflacionária que funcione. Até aí, tudo bem. O resto –o conteúdo específico do plano– contradiz os interesses do povo brasileiro.
A causa maior da inflação no Brasil tem sido a fraqueza do Estado, prostrado diante dos grandes interesses organizados. Em vez de impor aos aquinhoados o custo do investimento público em infra-estrutura e em gente, o Estado generalizou este custo para a sociedade toda através da inflação. A coexistência de duas moedas no país –uma indexada; outra, em processo de aviltamento permanente– ofereceu às classes proprietárias um negócio da China e uma alternativa providencial ao trabalho produtivo.
O dinheiro emprestado do exterior tomou o lugar da tributação eficaz. A necessidade de pagar os bancos estrangeiros e de substituir os empréstimos que deixaram de dar gerou a dívida interna. A rolagem da dívida interna fez a festa dos ricos. E os mecanismos de indexação desigual possibilitaram e perenizaram o arranjo.
Há, porém, um problema. Tanto o crescimento econômico sustentável quanto o bem-estar da grande maioria dos brasileiros dependem de uma grande elevação da poupança pública e do investimento público. Não o conseguiremos realizar sem um aumento correspondente da receita, imposta de forma clara e corajosa aos que gozam, numa nação de pobres, de uma vida de nababos. É estranho que, num país em que os 20% mais ricos da população percebem mais de 30 vezes a renda dos 20% mais pobres, os endinheirados paguem um ônus tributário bem menor do que aquele pago em países muito menos desiguais e ainda assim protestem estarem no limite da capacidade de contribuir. Que tratem de dispensar a criadagem, o casario, os automóveis, e as viagens e adquiram, em troca, um pouco de decência e de vergonha.
2) O defeito técnico central da política antiinflacionária que se propõe é a falta daquilo que se costuma chamar redundância nos meios de equilibrar as contas públicas. A experiência comparada dos planos de estabilização –tanto dos planos europeus do período entre as guerras quanto dos planos terceiro-mundistas da atualidade– demonstra que o requisito essencial de uma estabilização bem-sucedida é a credibilidade. Credibilidade, frente a malogros sucessivos, só se consegue com ostensiva folga de recursos. Não é o caso da política atual: primeiro, porque o ajuste é marginal ainda que se pudesse confiar nos números manipulados com que se descrevem as contas públicas; segundo, porque o acerto presume manter o investimento público no patamar ínfimo e insustentável em que agora se encontra.
O desdobramento prático imediato da falta de credibilidade é a aceleração previsível da inflação em cruzeiros. Só se poderia conter esta aceleração antecipando a dolarização, que –sempre negada pelo governo– é a verdadeira substância da política econômica que se prenuncia. Vale dizer: o governo teria de antecipar a compra de cruzeiros por reais, isto é, por dólares, comprometendo para este fim as reservas cambiais do país.
3) Quando se procura vislumbrar mais além para a etapa da instalação do real, só aumenta a preocupação. O real é o dólar. Vincular a moeda nacional ao dólar –diretamente como na Argentina ou indiretamente como no México– é embutir o colonialismo na moeda e aceitar, a sobrevalorização cambial. Cria-se pouco a pouco uma situação em que manter o câmbio significa estrangular a capacidade exportadora, subsidiar o consumo privilegiado e agradar aos investidores nacionais e estrangeiros. Desvalorizar significa arriscar a derrocada de uma credibilidade frágil e o recrudescimento da inflação.
4) Indo mais a fundo e transpondo a densa neblina dos fenômenos monetários, logo se vê o lado mais profundo do problema. A viabilidade de uma política antiinflacionária num país como o nosso está ligada às condições de um desenvolvimento autônomo e igualizador. O que agora se propõe é um acerto entre os grandes interesses organizados do país –inclusive os assalariados privados e públicos melhor remunerados– à custa não só das maiorias desorganizadas como também do poder de escolhermos nosso próprio futuro.
É trágico que muitos dos que se apresentam como agentes políticos dos trabalhadores se deixem contentar com concessões à política salarial, esquecendo que tais gestos não mudam a situação básica da massa popular subempregada, aprisionada na nossa vasta segunda economia, sem acesso ao capital, à tecnologia, aos mercados e, sobretudo, à educação.
5) Uma estabilização nacionalista e democratizadora teria de basear-se em primeiro lugar numa grande elevação do nível de poupança pública e investimento público, rompendo as vinculações tributárias e impondo um ônus maior, e mais equitativamente distribuído, aos privilegiados. Teria de rejeitar o caminho da dolarização, preferindo qualquer lastro interno da moeda. Teria de subordinar os fluxos de capital estrangeiro –e de fuga do capital nacional ao estrangeiro– a um projeto nacional de desenvolvimento, fundado numa parceria descentralizada entre o Estado e os produtores privados.
Teria de vir acompanhada por toda uma série de medidas que enfrentassem os interesses organizados e estendessem a mão do Estado ao segundo Brasil, o Brasil marginalizado e majoritário –pelo investimento social e pelo investimento produtivo. Não é para executar este plano senão para evitá-lo que se oferece a medida provisória 434 e tudo que a antecede e a seguirá.
6) O que pode fazer agora o Congresso Nacional para diminuir o dano se não rejeitar de todo a medida provisória 434?
Em primeiro lugar, pode subordinar a aprovação da medida à demonstração dos recursos e dos projetos necessários a uma confiabilidade efetiva no acerto das contas públicas e numa ação desenvolvimentista e social do Estado.
Em segundo lugar, pode insistir em participar de controle das reservas cambiais, impedindo que se dissipem para pagar o preço de uma dolarização inibidora e promovendo na Constituição (já que se pretende vincular a estabilização à revisão constitucional) as mudanças necessárias à participação parlamentar no controle das reservas.
Em terceiro lugar, pode vedar desde já qualquer vinculação, direta ou indireta, da URV presente ou do real futuro ao câmbio ou ao dólar.
Em quarto lugar, pode assegurar que qualquer encurtamento da correção monetária passada recaia apenas sobre ativos financeiros, excluídas as cadernetas de poupança.
Em quinto lugar, pode desde já abolir as tarifas alfandegárias em todos os setores que o Congresso Nacional julgar oligopolizados.
Mais arrojada do que estas cinco medidas seria uma sexta medida. O Congresso Nacional mandaria pagar imediatamente e de uma só vez em cruzeiros toda a dívida pública interna. A entrada maciça de capital especulativo nos meses recentes tem levado, pela tentativa vã de absorver e anular a expansão monetária consequente, a um aumento descontrolado da dívida interna. Se esta dívida não parece grande, em termos comparativos, é na verdade enorme quando se levam em conta os encargos que sua rolagem impõe a um Estado já empobrecido. O pagamento imediato da dívida equivaleria a uma desvalorização forçada dos ativos financeiros, a única juridicamente inexpugnável porque não reconhecida pelo direito como confisco.
Ficariam resguardadas desta efetiva desvalorização da moeda indexada dos ricos apenas as cadernetas de poupança. Ao estouro inflacionário em cruzeiros logo se seguiria o lançamento da nova moeda. O Estado zeraria sua dívida.
A diferença mais importante entre as estabilizações européias do período entre as guerras e aquelas preferidas hoje em dia por países semiperiféricos e elites semicoloniais é que, enquanto aquelas geralmente incluíram um componente importante de monetização da dívida interna (o pagamento compulsório da dívida em dinheiro), seguida pela introdução de nova moeda, estas costumam preferir a dolarização. Aquelas funcionaram muito melhor, e sobretudo com mais justiça social e maior resguardo da autonomia nacional. Como ministro da Fazenda do governo provisório republicano, Rui Barbosa praticou uma variante desta mesma política de pagamento forçado da dívida interna sob a forma do chamado "Encilhamento". Não foi perdoado pela plutocracia da época, de cujas garras predatórias procurava salvar a República nascente, nem muito menos compreendido pelos que depois usurpariam o rótulo do liberalismo.
7) Senhores membros do Congresso Nacional, a política econômica do país está sendo formulada por homens que perderam uma fé sem encontrar outra e que, por isto mesmo, se entregaram aos interesses e às superstições dominantes. Para dar respaldo a suas propostas, reúnem-se os autores de todos os planos anteriores malogrados, exibindo o malogro como medalha.
O Congresso pode, contudo, alcançar o improvável através do improvável. Pode jogar fora o roteiro que as elites lhe estão dando e enveredar pelo caminho da coragem cívica. Pode seguir o exemplo de outros Parlamentos que, contestados em sua autoridade moral e política, de repente se tornaram instrumentos da inconformidade nacional. Pode ser Congresso de verdade e pode ser brasileiro.

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