São Paulo, sábado, 19 de março de 1994
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Uma história banal

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Era uma mocinha do Grajaú, mudou-se para Copacabana, engravidou e morreu. Engravida-se também no Grajaú e em outras paragens.
Mas o caso da moça tinha aquilo que um publicitário chamaria de "diferencial". Sair do Grajaú, naquele miolo da zona norte que não é subúrbio, mas ainda não é zona sul, equivale à saga do retirante que deixa a caatinga onde passa fome e morre de sede para tentar sobreviver na cidade onde continuará passando fome e morrendo do mesmo jeito.
Copacabana está cheia de gente que veio de longe, dos infernos mais distantes do território nacional. É mole o sujeito sair de São José das Três Ilhas ou de Mocotó Assu -e dois anos depois morar num quarto-sala da Barata Ribeiro. Difícil, mais do que difícil, temerário é o sujeito que nasceu no Méier realizar a travessia, empreender o êxodo, transpor os túneis e conquistar o outro lado. Custa mais do que caro: custa a perda de raízes e, no caso da moça, custou a vida.
Tinha 18 para 19 anos. Olhos claros, mais para verdes do que para azuis. Morava bem, em casa de altos e baixos, família classe média bem-sucedida, carro, pequeno sítio em Friburgo, viagem a Disneyworld. A moça queria mais: a liberdade de escolher um modo de caminhar pelo mundo, amigos, hora de chegar e sair, não queria estudar nada que não fosse a própria vida e a própria vida –para ela– estava do "outro lado".
Há sempre um rio no meio –quando se é César. No caso da moça, que não era César e não queria o poder, mas simplesmente viver, havia o túnel.
Três meses depois da façanha de ter deixado para trás a atávica, pamonha e empoeirada zona norte, conheceu um cara que era contra o uso da camisinha. A moça não pegou Aids, mas engravidou. Uma conhecida a levou para o aborto –por coincidência, numa clínica clandestina em Vila Isabel, ao lado do Grajaú. O carniceiro já havia feito cinco abortos naquela tarde. Era uma mocinha do Grajaú, mudou-se para Copacabana, engravidou e morreu.

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