São Paulo, quarta-feira, 23 de março de 1994
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Gabriela está de luto

GILBERTO DIMENSTEIN

BRASÍLIA – O ambiente aqui está quentíssimo. Como se não bastasse o conflito gerado pelo aumento dos salários do Judiciário e da Câmara dos Deputados, assiste-se à vergonhosa renúncia em massa de anões. Mas hoje o tema da coluna é literatura –ou melhor, a decepção que me provoca um escritor. Refiro-me a Jorge Amado.
Tenho visto duras críticas contra sua obra: a maioria delas me aborrece. Gosto muito de reler alguns de seus livros, especialmente "Farda, Fardão, Camisola de Dormir". É um genial relato sobre como um grupo de intelectuais enfrentou o Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas.
Está aí um traço marcante de seu trabalho literário, um dos ingredientes que o habilita (com justiça) ao Prêmio Nobel: a solidariedade com os mais fracos e a crítica aos poderosos. Minha decepção com Jorge Amado é vê-lo trair os sentimentos que ajudou a difundir em mim –e, imagino, em milhões de pessoas que tomaram contato com seus maravilhosos personagens.
Li ontem no jornal um rasgado elogio de Amado ao governador Antônio Carlos Magalhães, um dos símbolos mais acabados da oligarquia brasileira. Aplaude sua administração. Até aí, tudo bem. Mesmo seus maiores inimigos, reconhecem em ACM certas qualidades como administrador. Vou além: a polêmica restauração do Pelourinho é uma obra importante e histórica.
O que me espantou foi uma frase do escritor: "A democracia é inata à personalidade de Antônio Carlos Magalhães". Como um intelectual do porte de Jorge Amado comete tal desatino?
Não vou nem aqui discutir a política baiana, onde ACM institucionalizou a chantagem através de dossiês. Ele ajudou o movimento militar de 1964 e teve a confiança de todos os ditadores –essa mesma ditadura que matou, torturou e perseguiu presos políticos. Perseguiu também escritores.
ACM só abandonou o regime militar porque ele acabou e, na sua genialidade oportunista, pulou para Tancredo Neves. Fora ter apoiado uma ditadura, certamente outras duas valiosas colaborações de ACM para a democracia foi ser um dos principais articuladores da candidatura presidencial de João Baptista Figueiredo –e o gigantesco e inútil esforço para que Fernando Collor de Mello não sofresse o impeachment.

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