São Paulo, quinta-feira, 24 de março de 1994 |
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Masina deixa o cinema órfão mais uma vez
CARLOS HEITOR CONY
Fazendo dupla ou interpretando papeis criados por Fellini para o rádio, ela não foi descoberta pelo marido e principal diretor. A estréia de Giulietta em "Sem Piedade", de Roberto Rosselini, não marcaria nem a carreira dela nem a do futuro diretor de "Roma, Cidade Aberta". E sua primeira grande oportunidade no cinema se deveria, ainda, a outro diretor, um dos monstros sagrados na época, Alberto Lattuada. A história é conhecida: depois de trabalhar durante anos com Rosselini, Fellini queria dirigir e descolou parceria num projeto o Lattuada, o único diretor italiano que poderia fazer sombra a Rosselini e De Sica. Para armar o elenco, Fellini não sugeriu a mulher: foi o próprio Lattuada quem escolheu Giulietta para interpretar o esboço do personagem em que ela mais tarde se especializaria: a companheira do "capocomico" Peppino de Fillipo, na "troupe" mambembe de "Mulheres e Luzes". A impressão que se tem é que foi ali que Fellini olhou a mulher e nela descobriu a atriz, mas não ainda o personagem, o tipo. Esta descoberta não foi de ninguém: foi dela própria, sendo um dos raros exemplos do personagem que se transforma em tipo e segue trajetória própria. Quatro anos depois, em 54, Fellini estoura no mercado mundial com um filme que muitos consideram sua obra-prima: "A Estrada da Vida". Leão de Ouro em Veneza e Oscar de melhor filme estrangeiro, a consagração mundial de Fellini foi paralela à descoberta de uma atriz muito especial, que tal como Chaplin e Buster Keaton não precisava falar, que bastava um "close" em seu rosto para roubar qualquer cena e transmitir qualquer código. A partir de "A Estrada da Vida", ela passou a merecer um tratamento diferenciado em qualquer elenco que se armasse: teria de ser Cabíria ou Gelsomina, talvez a primeira hippie a aparecer no cinema, mais "persona" do que personagem até mesmo quando, no final de carreira, faz "Ginger e Fred" e ressuscita o tipo que ela esboçou no início de tudo, na "troupe" mambembe de "Mulheres e Luzes". Com a morte de Fellini, ano passado, não foi só o cinema italiano que ficou órfão. Giulietta, na vida real tantas vezes confundida com a do cinema, conseguiu o que Cabíria ou Gelsomina seriam na circunstância: viúva e órfã. Sobreviveu ao marido em meses, depois de um casamento que resistiu às confissões do marido em "Oito e Meio", quando a mulher do diretor Guido, então interpretada por Anouk Aimée, é cruamente maltratada. Para Giulietta, as traições do marido e a crueldade do diretor pouco importavam. Afinal, ele dedicaria a ela o filme que ela própria considerava a "justificação de uma vida": "Julieta dos Espíritos", de 1965, a maior homenagem que um diretor poderia prestar a uma atriz, lembrando "A Woman of Paris", feito por Chaplin para homenagear Edna Purvia sua companheira de vida e de tantos filmes. Animal cinematográfico em sua essência, Giulietta Masina não precisou dirigir: ela foi, sobretudo nesse filme, sujeito e objeto do próprio cinema. Texto Anterior: HP; Ponteio Próximo Texto: Atriz gostava de ser 'bissexta' Índice |
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