São Paulo, domingo, 27 de março de 1994
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Asilados inauguram embaixada da Iugoslávia

MARCELO RUBENS PAIVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Asilados inauguraram embaixada da Iugoslávia
Já no primeiro de abril de 1964, Brasília está ilhada, aeroporto interditado, estradas bloqueadas, comunicações interrompidas e a venda de gasolina suspensa. Muitas prisões, pouca resistência e Jango no exílio seriam suficientes para a confirmação da vitória da "tradição cristã". Mas o golpe redentor que livraria o país do "jugo vermelho" tem o seu desfecho nove dias depois, com o Ato Institucional e as cassações. Dois momentos da mesma cartilha que inclui o Brasil na área de influência da chamada "Civilização Ocidental Cristã", vulgo tio Sam. Nove dias em que Brasília manteve as esperanças de permanecer no poder com um Congresso livre e assistiu atos de heroísmo e de amadorismo patropi.
Nas primeiras horas do movimento, já está criada na capital a "Cadeia da Legalidade": através da Rádio Nacional e Mairinque Veiga, o país escuta dois dias ininterruptos de discursos conclamando o povo a resistir. O Congresso decreta, no dia 2, a vacância do cargo e empossa o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli. No entanto, Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil, e Waldir Pires, procurador da República, solitários no Planalto, armados de pistolas, recusam-se a entregar a faixa presidencial. São convencidos pelos amigos a desistir e colocados num Cessna para o Uruguai.
A campanha para o endurecimento do golpe e a cassação de deputados que sustentavam Jango parte da turma do "mata e esfola": Hebert Levy, Amaral Neto, entre outros. Dia 4, três mil soldados chegam a Brasília, mudando a cidade de figura. Difícil acreditar que o "povo" parecia indiferente à instalação de mais uma ditadura. Reuniões nas casas dos deputados Bocaiúva Cunha e Zé Aparecido alertam os possíveis perseguidos. A hipótese de asilo não é descartada, e uma comissão avalia as embaixadas: a maioria instalada em apartamentos pequenos. Num prédio piscina e gramado, a embaixada da Iugoslávia tem um porém: não foi inaugurada.
Nove de abril. Lista de cassados publicada. Corre-corre na capital. Jornalistas, sindicalistas, professores, universitários e parlamentares se asilam, inaugurando a embaixada da Iugoslávia; levam móveis, colchões, panelas, mantimentos e até uma cozinheira, para alívio os caseiros iugoslavo, únicos residentes no prédio não concluído. Em pouco tempo, o entra e sai dos não cassados transforma a embaixada no local mais bem informado do país.
A espera poderia ser longa, e logo é sugerido um regulamento. As manhãs são para debates políticos e aulas de direito, às tardes, esportes e visitas, e silêncio nos quarto às 21h. Obrigatório: barba feita, banho tomado, não andar de bermudas e pijamas. Uma casinha no fundo do terreno serve para encontros dos casais. Não demora para a imprensa chamá-los de "asilados privilegiados". Foram 77 dias de pássaros, grama, sol e algumas festinhas, entre elas, meu quinto aniversário, festejado, me lembro bem, com presentes, discursos, crianças, angústia e expectativa; meu pai fora cassado na primeira lista, o que, ironicamente, se transformou em símbolo de status político.
A chegada do salvo-conduto sinaliza o início da dramática vida de um exilado. Em comboios, partem diretamente para aviões e navios, deixando mulheres e filhos. No início, são recebidos como heróis pelos governos europeus, paparicados pela imprensa estrangeira e universidades. Mas a solidão entra sem ser anunciada. Exilados vagando pelos cafés da Europa se queixam: onde estava o "povo"? O que aconteceu nesses 9 dias, entre o primeiro de abril e o Ato Institucional, para que a chamada "revolução das forças democráticas contra o comunismo", apoiada pela grande imprensa, Igreja, empresários, classe média e políticos, se transformasse numa irreparável ditadura militar? Restou a única certeza: o populismo não transforma o Brasil.

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