São Paulo, domingo, 27 de março de 1994 |
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A cidade no horizonte da arte contemporânea
NELSON BRISSAC PEIXOTO
pelo sagrado, da exploração dos fluxos das comunicações e da deriva, do rastreamento das pistas perdidas da história. "Arte/Cidade" procura reunir em espaços urbanos artistas de diferentes procedências, promovendo o intercâmbio das diversas linguagens: a experiência da cidade. Uma busca de junturas entre as diferentes produções individuais, exigindo dos artistas o deslocamento dos suportes convencionais. Trabalhos que acabam se contaminando, na medida em que refletem as discussões e o embate com o lugar. Num antigo Matadouro construiu-se uma cidade sem janelas. Um mundo subterrâneo e sombrio, horizonte espesso, acúmulo de coisas que se recusam a partir. Tudo é abarrotado, os espaços profusamente tomados por camadas de reboco, tapumes de madeira, vigas de ferro soterradas por improvisações de alvenaria, restos de trilhos e traquitanas, detritos e pó. Um espaço desprovido de memória, do qual só restam a estrutura fabril e resquícios mecânicos da atividade esquecida. Ao oposto do impulso à transparência e leveza, à tentativa de evitar a compacidade do mundo pelas torres e arranha-céus, temos um confronto direto com o volume esmagador da matéria. Os artistas aqui reunidos atuam sobre a gravidade das coisas. Em vez de uma espectativa de transcendência, eles olham para baixo, para o que tem densidade e concretude. Tudo compartilha a mesma materialidade: evidência da operação, do gesto, do esforço. Em todo lugar, marcas da mão, depositando escuridão sobre a luz. Mundo feito de terra, onde se atua lastreado na matéria, escavando o chão, raspando as paredes, como o ferreiro que malha o metal ou o gravador que opera com o buril. Estas maquinarias pesadas –referências a um universo mecânico anacrônico– estão destinadas à imobilidade, não lhes resta nenhuma chance de vôo. Mesmo as obras que a princípio comportariam elementos aéreos –como as feitas com fotografia, cinema e vídeo– apresentam imagens densas e carregadas. O solo, em vez do céu. Trata-se de recolocar a questão: a obra de arte tem lugar na cidade? Pois a arte é, desde o início, uma atividade tipicamente urbana. Constitutiva da cidade: admirando os mirabilia urbilis tornava-se consciência dos valores históricos que os monumentos representavam, pelo fato de estarem ali, evidência de um passado que permaneceu presente. Eles magnificavam os atos da vida cotidiana, encarnavam a alma da cidade. Não é este o "papel divino" que Baudelaire atribui à escultura, capaz de com seus gestos mudos de glória fazer o passante olhar para o céu? Na metrópole contemporânea, porém, a escultura perde esta transcendência, não faz mais ninguém parar. Desaparece o o lugar que o monumento tinha na cidade, fundamento de seu caráter de obra de arte. A trama urbana, desfeita por contínuas reformas e transferências da população, não pode mais ser mapeada por seus habitantes, não há mais como se situar na cidade. A desambientação dos monumentos, a diáspora das obras de arte, implica a destruição dos tecidos urbanos. Mas um novo território é formado por este trânsito, esta permeabilidade generalizada. Como uma sobreposição de círculos concêntricos, ligeiramente descentrados. Tudo circula sem cessar: estamos no meio, como o mato que cresce entre as pedras. A visão se faz no meio das coisas. Um entre-lugar constituído por linhas de fuga em todas as direções e dimensões, aumentando o território pela conjugação destes múltiplos fluxos. Uma zona intersticial, onde apagam-se todos os limites, todas as fronteiras. Passagens que instauram uma interação –onde o contemporâneo encontra o barroco– entre as diferentes artes: em extensão, cada arte tendendo a se realizar na seguinte. Um encadeamento em que cada lance amplia o espaço da arte. Assim é que a pintura sai de sua moldura e realiza-se na escultura; a escultura ultrapassa-se na arquitetura; e a arquitetura, por sua vez, coloca-se em relação com a circunvizinhança, de modo a realizar-se no urbanismo. A escultura, que parecia definitivamente condenada ao nomadismo, a não ter lugar na cidade contemporânea, encontra seu espaço na relação com a arquitetura e a paisagem, entre o construído e o não-construído, entre o que é propriamente escultórico e o desenho, a fotografia, o vídeo. É no entrelaçamento das passagens, numa infinidade suspensa de movimentos e tempos, que a arte encontra o seu lugar. Não por acaso a figura encontrada por Benjamin para ilustrar a vocação da fotografia para arrancar lugares de sua evidência banal e interrelacioná-los em novas situações foi a da porta giratória: articulação móvel que abole a diferença entre interior e exterior. Estes lugares da cidade são capazes de transformar a linguagem mais secreta da intimidade em proclamações públicas. A porta giratória é um dispositivo de passagem. A obra de arte encontra uma nova situação na contemporaneidade: a relação com tudo que não é ela. Uma vasta articulação com o entorno. Uma inscrição qualquer num lugar –um quadro, um objeto, uma imagem projetada– recorta de outro modo o espaço e rearticula seu desenho e proporções. Questionamento da unicidade da obra de arte, do seu isolamento no espaço, do resguardo assegurado pelas galerias e museus, promovidos pelo modernismo. Só a metrópole pode proporcionar estes entrelaçamentos, provocar as articulações que transpõem as rígidas fronteiras entre as linguagens artísticas, o trânsito que dissolve os limites das coisas, criando tecidos mais vastos heterogêneneos. Aqui se explicita a relação entre arte e cidade: trata-se de despertar a experiência do mundo Mostra: Projeto "Arte/Cidade" Onde: Antigo Matadouro Municipal (Lgo. Senador Raul Cardoso, 207, Vila Mariana, zona sul) Quando: último dia, das 10h às 23h Texto Anterior: Spielberg e a sobrevivência Próximo Texto: Para cientista, implante de chip é possibilidade Índice |
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