São Paulo, quarta-feira, 30 de março de 1994
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Lydon conta sua versão da história do punk

SÉRGIO MALBERGIER
DE LONDRES

John Lydon está certo. Sua autobiografia "Rotten, No Irish, No Blacks, No Dogs", lançada este mês em Londres, "é o mais perto que se pode chegar da verdade" sobre o Sex Pistols, a banda punk que ele liderou com o nome de Johnny Rotten (Joãzinho Podre), de 1976 a 1978.
Parcial ou não, o relato vem do olho do furacão que mudou a música, a moda, toda a postura pop no final da década de 70. O Brasil até teve parte na história. O fim dos Pistols foi acelerado pela viagem de dois membros da banda e o empresário-mentor Malcolm McLaren ao Rio para filmarem cenas com Ronald Biggs, o ladrão do trem-pagador que se refugiou em praias cariocas. Lydon, então Rotten, após o último show da banda em San Francisco (EUA), com US$ 20 no bolso e sem quarto para dormir, decidiu abandonar o barco.
Lydon, 38, começa o livro relembrando sua infância miserável em Finsbury Park (norte de Londres). De pais irlandeses católicos, era apedrejado no caminho para a escola católica pela maioria protestante. Começou aí a revolta contra o inglês, que o marginalizava por ser de origem irlandesa, e também por ser bastante pobre.
Escrito com a contribuição dos amigos Keith e Kent Zimmerman, publicado pela Hodder & Sloughton, o livro traz relatos de vários protagonistas do movimento punk como Billy Idol e Chrissie Hynde (vocalista dos Pretenders), além dos outros integrantes dos Pistols e do pai de Lydon. O humor ácido, que Lydon sempre prezou na banda, está presente.
Ele conta como o banheiro era o lugar preferido para uma transa nos primórdios do punk e que o primeiro passo para a sua transformação em Rotten foi a meningite que teve bem criança. Não só por causa das alucinações ("mais fortes do que qualquer droga") ou vômitos frequentes, mas porque a doença o deixou um ano afastado da escola. Quando voltou, se sentiu isolado, a parte, diferente dos outros.
Acabou sendo expulso da escola católica. Na escola pública, adotou um visual "pré-punk" de desleixo total, que seria mais tarde adotado por McLaren e pela estilista Vivienne Westwood na loja Sex, que os dois tinham em Londres.
Foi na escola também que conheceu Simon Ritchie, a quem batizou de Sid Vicious em homenagem ao seu hamster, que veio a se tornar o segundo baixista dos Pistols. Lydon revela que ainda tem problemas por causa da morte de Sid por overdose de heroína em 79. Podia ter feito mais para afastá-lo do vício.
Depois que pintou o cabelo de verde, Lydon foi expulso de casa. Foi morar com Sid em apartamentos abandonados de Londres. Era 1976. Os dois e mais um pequeno grupo de amigos circulavam pela cidade em trapos e com um corte de cabelo cuja idéia era "pegar uma tesoura e arrancar tufos para não ficar nenhuma parte arrumada". Bem diferente do rock-spray de hoje.
A rua mais quente em Londres naquela época era King's Road, onde McLaren e Westwood tinham sua loja de roupas de borracha e instrumentos de tortura. Antes de atrair a molecada, era frequentada por cinquentões sado-masoquistas.
Ao ver o franzino Lydon e seu cabelo verde numa camiseta com a inscrição "Eu odeio Pink Floyd" furada por presilhas, McLaren decidiu convocá-lo para ser o vocalista da banda que formava com Paul Cook (bateria), Steve Jones (guitarra) e Glen Matlock (baixo, depois substituído por Sid Vicious).
Para deleite dos tablóides sensacionalistas, não faltaram "incidentes de percurso", todos relatados no livro. O mais famoso, quando no programa de TV Today -algo como o programa da Silvia Popovic, mas na Globo- a banda despejou uma coleção completa de palavrões ao vivo para toda a Inglaterra, na hora do chá! Choveram protestos. Um pai chutou a TV...
Músicas como "God Save the Queen", escrachando a realeza quando ela ainda era respeitável, em pleno ano do jubileu da coroação de Elizabeth 2.ª (77), provaram que era fácil ainda, apesar da liberação dos anos 60, chocar e escandalizar.
Os Pistols gravaram dois discos "Never Mind The Bollocks!" (77) e "The Great Rock'n'roll Swindle" (79). Depois vieram compilações. Seus shows eram "caos total", diz Lydon. A aparelhagem era horrível, não se ouvia nada. E tinha aquela cusparada do palco para a platéia e vice-versa. Lydon revela que os escarros (que o acompanham até hoje nos shows que faz com sua banda atual, o PiL) têm origem física. Ele sofre de grave sinusite e precisa cuspir de tempos em tempos.
Não só pela saliva, fica claro no livro que Lydon, hoje morando em Los Angeles, teve papel fundamental no movimento punk, ao contrário da pregação de McLaren, de que ele pegou um bando de adolescentes e os usou para manipular e expor a fraude do showbiz.
Isso aconteceu, mas sem Rotten não teria. Ele tinha uma raiva orgânica e rancorosa contra o establishment, fruto de sua infância miserável (como sempre). Ele entrou no barco para agredir, não para formar uma legião de clones punks (que desprezava) e se afirmar como manipulador da mídia.
Lydon abre e fecha o livro com sua última frase no palco com os Pistols: "Já se sentiu enganado alguma vez?" Pelo menos os Pistols ajudaram a expor a enganação que, infelizmente, ainda reina.

Livro: Rotten, No Irish, No Blacks, No Dogs
Autor: John Lydon
Preço: 39 URVs, na Livraria Cultura (tel. 011/285-4033)

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