São Paulo, quarta-feira, 30 de março de 1994
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Poesia de Verlaine desafia a "modernidade"

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Poesia de Verlaine desafia a 'modernidade'
Comemoração dos 150 anos de nascimento do poeta francês permite o confronto com a 'inatualidade' de sua obra
Comemoram-se hoje os 150 anos de nascimento do poeta Paul Verlaine. Cento e cinquenta anos é bastante tempo e, no caso de Verlaine, é de temer que a data se constitua em assunto apenas para conversa de velhotes.
Ao lado dos grandes inventores da modernidade literária –Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé–, Verlaine tende a ocupar um posto cada vez mais discreto, secundário, gentil.
Versos melodiosos, bons de decorar; paisagens melancólicas: outonos e galanterias, é esta a imagem que resta de Verlaine, um pouco como se ele tivesse se transformado num dos quadros de Watteau, numa das cenas de Arlequim e Colombina do século 18 francês, que ele não se cansava de ironizar.
Verlaine é um poeta bem mais fácil do que Baudelaire, Rimbaud ou Mallarmé. Para quem está aprendendo francês, algumas da suas obras mais conhecidas são passagem obrigatória e útil: "Il pleure dans mon coeur comme il pleut sur la ville" (chora no meu coração como chove sobre a cidade)...
Mas, fora as lições de francês e fora o encanto de seus poemas, como destacar, por assim dizer, a "modernidade" de Verlaine e a importância de renovar a leitura de seus livros?
Uma estratégia comum é a de carregar as cores de um poeta maldito e transgressor. Verlaine largou da mulher para ter um caso com Rimbaud; vagabundo e bêbado, batia na mãe. Fica, então, uma aura marginal em torno dele, assegurando seu trânsito na "modernidade".
Mas como o marginalismo e a delinquência já foram mais "modernos" do que são hoje –pense-se na poesia marginal dos anos 70– para tentativa de renovar Verlaine não vai muito longe.
Há outra estratégia: a de provar que, a despeito da aparências, Verlaine era um poeta "difícil". Que, a despeito da superfície cantante, da graça imediata de seus versos, um universo de enigmas, de ambiguidades, da quebra-cabeças se coloca diante do leitor. E a "modernidade" de Verlaine se restabelece, graças ao que sua obra tenha de enigmático.
Desconfio um pouco desse esforço. Verlaine talvez seja tão "fácil" quanto parece. Sua poesia é a mais "poética", no sentido comum do termo, que se possa conceber. Brumas na planície, indefinições de almas, infelicidades sem motivo, sutilezas de violinos ao fim da tarde.
É claro que, descrevendo assim a sua obra, reproduzo o clichê "verlaineano", as lembranças de Watteau num jardim francês, onde amores são puro fingimento, onde frivolidade e fantasia não disfarçam o tédio da existência.
É o Verlaine de Guilherme de Almeida, e também o de Manuel Bandeira ou Cecília Meireles –poetas cuja "facilidade", aliás, prejudica um pouco seu prestígio entre os críticos literários.
Não quero propor aqui um "outro" Verlaine, mais difícil, mais complicado do que pensam os simples mortais.
Não quero sequer dizer que Verlaine seja uma leitura pertinente para o público atual. Verlaine não revolucionou a literatura como Rimbaud ou Mallarmé. Os 150 anos de seu nascimento nos confrontam com sua "inatualidade", com o velhusco de seus poemas, não obstante geniais.
Mas, talvez, este seja o nó da questão. Verlaine era apenas moderadamente moderno, se comparado com Rimbaud. Tinha uma enorme, irônica, nostalgia pelo passado. Subvertia as regras do ritmo, da rima, do vocabulário, sem afrontá-las à força.
Não era um revolucionário no modelo leninista –agindo por meio de golpes de Estado– mas sim um "moderno" no modelo mais social-democrata, mais conciliador. Sedução, não explosão. Convencimento, não violência; só as violências sutis, de que sua obra está repleta.
O resultado é paradoxal. De um lado, como ele não foi revolucionário o suficiente, tendemos a identificá-lo com o passadismo: repuxos à luz da lua, danças aristocráticas, mascaradas, justo o que ele, modernamente, tratava de destacar sob um prisma ambíguo, esquisito, irreal.
Não que ele fosse um passadista. Assim como Chateaubriand, nos começos do século, impunha como tema literário o "vago das paixões", Verlaine inventou, já nos finais do oitocentos, o "vago das sensações". Não mais a descrição precisa do que se vê, ouve, cheira e apalpa, mas o sensorial sob a marca do desaparecimento, da evanescência. Não mais a melancolia da alma, mas a melancolia do corpo.
Isto, quanto ao "conteúdo", à "temática" de sua obra –coisa que já o opõe frontalmente, aliás, à revolução do sensorial proposta por Rimbaud, ao multicolorido e ao hiperestetismo das vanguardas modernistas.
Quanto à "forma", temos um poeta que prezava "a música antes de tudo", extremamente melodioso, mas que sabia desrespeitar os próprios princípios. Quando um poema se mostra quase hipnótico de tantas repetições, rimas internas, sons nasais, ele logo trata de cortar o fluxo da canção. O exclamativo, a interjeição, o desequilíbrio rítmico, interrompem estudadamente a melodia.
Outras vezes, ele exagera "modernamente" na melodia. O equilíbrio e a variedade clássica dos sons, a regra de alternar rimas masculinas (paroxítonas) e femininas (oxítonas) é desrespeitada, identificando o poema a um bem de consumo de massa.
Quanto mais ingênuo, mais sofisticado Verlaine parece ser. Sua facilidade é real, mas irônica. Seu modernismo é moderado, mas destrutivo. Quem sabe, 150 anos depois de seu nascimento, possamos vê-lo como mais atual do que nunca.
Verlaine contra Rimbaud e Mallarmé? Difícil acreditar nessa proposta. Mas a questão está provavelmente em jogo nos dias de hoje. E, se não for pertinente, sempre resta a delícia de ler, nas canções de Verlaine, a poesia de um passado que mesmo para ele já tinha desaparecido.

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