São Paulo, sexta-feira, 1 de abril de 1994
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Um continente, duas percepções

LUIZ A. P. SOUTO MAIOR

Há cerca de uma semana da data em que escrevo, o governo brasileiro apresentou informalmente aos seus parceiros no Mercosul sua noção do que deveria ser a Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA). Era mais um passo tendente à concretização da idéia lançada pelo Brasil em outubro de 1993, numa reunião do Grupo do Rio. O fato passou despercebido da opinião pública, já que a imprensa não-especializada praticamente o ignorou. Era inevitável. Afinal, a ALCSA, ainda que venha a prosperar, é algo que só se concretizará em 2005 –uma eternidade para quem está preocupado com problemas imediatos como o excesso de mês no fim do salário ou o funcionamento da URV. E no entanto, as opções que se façam no tocante à integração econômica regional podem ter considerável impacto sobre o futuro do nosso país. Em última análise, há hoje duas percepções básicas, que se distinguem na sua concepção e nos seus desdobramentos.
Em junho de 1990, o então presidente dos Estados Unidos, George Bush, lançou a sua "Iniciativa para as Américas", cujo componente mais ambicioso e de maiores consequências potenciais para a América Latina era a proposta de uma área hemisférica de livre comércio (AHLC), que se extenderia "do Alasca à Terra do Fogo". Englobar-se-iam, assim, num vasto espaço comercial preferencial, as economias altamente desenvolvidas dos EUA e do Canadá e os países latino-americanos em desenvolvimento.
O acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), que reúne o Canadá, os EUA e o México, pode ter sido o primeiro passo nesta direção. O atual governo democrata, embora sem qualquer declaração política formal de apoio à "Iniciativa para as Américas", tem manifestado a disposição de ampliar o Nafta rumo ao Sul. O Chile seria o próximo candidato. A percepção que se depreende da orientação adotada por Washington é a de um continente vinculado ao grande mercado dos Estados Unidos, com todas as implicações econômicas e políticas daí decorrentes.
Mesmo nos EUA, as vantagens de um tal esquema não são, porém, unanimemente aceitas. Os sindicatos norte-americanos, temerosos de uma "emigração" de indústrias daquele país para o México, opuseram-se ferrenhamente à aprovação do Nafta pelo Congresso. Só o empenho direto do presidente Clinton conseguiu vencer a resistência trabalhista. Diante de tais percalços, pode-se especular sobre a determinação com que o Executivo norte-americano procurará levar adiante o projeto inicial de uma AHLC. Aos obstáculos internos somam-se suspeitas –aparentemente encampadas por um estudo do governo norte-americano, mas contestadas pelos mexicanos– de que o México se oporia a uma extenção da "sua" área de livre comércio a outros latino-americanos. Por outro lado, tudo faz crer que Washington, que convocou uma reunião de cúpula dos países democráticos do continente para dezembro vindouro, tome então alguma iniciativa de âmbito continental.
Antes mesmo do lançamento da "Iniciativa para as Américas", o Brasil se lançara por outra rota de aproximação com seus vizinhos. Iniciado com um programa de aproximação política e econômica com a Argentina, tal caminho desembocou –em 1991, depois, portanto, da iniciativa do presidente Bush– no Tratado de Assunção, pelo qual Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai decidiram unir suas economias no Mercado Comum do Sul (Mercosul), a partir de 1º de janeiro de 1995. Em tese, davam, assim, os quatro prioridade a um esquema próprio de integração regional.
A conciliação entre os dois enfoques foi buscada através do acordo chamado de quatro mais um, entre os signatários do Tratado de Assunção, de um lado, e os Estados Unidos, de outro. Nele se assegurava a prioridade atribuída ao Mercosul pelos quatro países sul-americanos e que os assuntos de integração regional seriam tratados por eles solidária e não individualmente. Por sua vez, o Brasil, em coerência com a importância atribuída à integração com os demais países da América do Sul, passou a tomar iniciativas de aproximação com os da bacia amazônica e lançou a já mencionada idéia da ALCSA.
Encontram-se, assim, as chancelarias do continente frente a dois enfoques diferentes das relações econômicas interamericanas. A opção por um ou por outro depende largamente das condições econômicas de cada país e de como perceba a sua posição atual e futura no cenário internacional. Para o Brasil, com um comércio internacional geograficamente diversificado (80% das nossas exportações se destinam a países que não os Estados Unidos) e uma indústria de transformação a preservar e desenvolver, a eventual concretização de uma AHLC apresentaria dificuldades evidentes. A integração com economias num estágio de desenvolvimento mais próximo da nossa é claramente mais adequada. Para outros países sul-americanos, com um parque industrial menos significativo e mais vinculados ao mercado norte-americano, abertura total e preferencial do seu mercado às exportações norte-americanas pode parecer um preço razoável pelo esperado incremento de suas vendas aos EUA. O grande desafio para a nossa política regional é como conciliar estas percepções distintas e –pelo menos no futuro próximo– conflitantes da realidade continental.

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