São Paulo, sexta-feira, 1 de abril de 1994
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A cidadania, segundo São João

LUÍS NASSIF

No decorrer do dia de ontem, igrejas de todo o país reproduziram uma cerimômia tão antiga quanto o cristianismo, chamada de lava-pés.
Membros humildes da comunidade, escolhidos entre os mais desassistidos, tiveram seus pés banhados e beijados por príncipes da Igreja, que estavam paramentados dos pés a cabeça.
A cerimônia do lava-pés reproduz, com impacto renovado, uma das mais profundas lições de cidadania já registradas na história das civilizações –relatada na Bíblia no Evangelho de São João.
A atribuição de lavar os pés dos convidados, antes dos banquetes, era dada ao servo mais desprezível da casa. No Evangelho, Cristo chama a si a responsabilidade.
Antes disso, porém, firma sua autoridade, seu poder de chefe.
"Vós me chamais mestre e senhor e dizeis bem, porque eu o sou". Depois, lava os pés dos humildes.
A partir destas duas situações, vai bordando, ponto a ponto, o papel do mandatário e os princípios básicos que devem regular relações sociais e políticas.
Servidão e exemplo
Mostra que, antes de mandar, o mestre deve servir, para tornar-se digno do exercício do mando. "O filho do homem não veio para ser servido, mas para servir".
Depois, trata de transmitir o exemplo para todo o tecido social. "Ora, se eu, senhor e mestre, vos lavei os pés, vós deveis também lavar os pés uns aos outros".
Com isso, ele define claramente a obrigação de que todo mestre tem de prestar contas de seus atos, numa objetiva lição de democracia.
E, então, diz: "Não vos chamarei servos, porque servos não sabem o que faz o seu senhor. Mas tenho vos chamado amigos".
Finalmente, estabelece limites à atuação dos escalões inferiores. "Na verdade, na verdade vos digo, não é o servo maior que o seu senhor, nem o enviado maior que aquele que o enviou".
Tempo e poder
Dois milênios de rígida hierarquização e de poder centralizado alteraram consideravelmente o discurso original da Igreja.
Em alguns casos, o verbo transformou-se em instrumento de uma estratégia de poder muito mais ampla e dessacralizada.
Mas não há como deixar de reconhecer no Evangelho, ainda hoje, fonte inesgotável de lições políticas e de vida –como observa o jornalista Chico Pinheiro, fino estudioso da matéria.
Milagres
Seria milagre divino, esperar que a classe política brasileira se imbuísse destes princípios, quando retornasse da Semana Santa para o exercício do Poder.
Mas é perfeitamente factível que, a partir de João Evangelista, os servos de hoje se conscientizassem de direitos consagrados pela civilização há muito mais de dois milênios –e, mais do que matéria de fé, exigissem-nos como exercício de cidadania.
Constituinte exclusiva
Se o presidente da República, Itamar Franco, tem a mínima pretensão de desvestir-se da imagem ridícula que irá legar para a história, deveria o quanto antes utilizar o restante de autoridade que lhe resta.
Assim, ao invés de distribuir concessões de rádios para fins eleitorais. De levantar a bandeira da Constituinte exclusiva –que seria composta por representantes não-políticos da sociedade civil.

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