São Paulo, sexta-feira, 1 de abril de 1994
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Filhos do golpe reconstróem a cidadania

HERBERT DE SOUZA

Em 1964, o Brasil buscava a mudança. Uma longa e sofrida história que nascia do genocídio indígena, passava pela escravidão e continuava na dicotomia entre uma elite fria e uma massa de trabalhadores sem direitos e sem terra. Seu nome era reforma de base, democracia. Um movimento democrático, que nascia da sociedade, tentava se aproximar de um Estado que durante séculos havia sido o grande instrumento do status quo, da Casa Grande e Senzala, do apartheid social.
Os sindicatos tentaram chegar mais perto do poder do patrão-Estado e dos patrões-empresários. Foram repelidos como subversivos que tentavam implantar a república sindicalista. Queriam só melhores salários, um pouco de dignidade.
Os camponeses se organizaram para lutar pela terra, o direito de viver, de trabalhar, os meios elementares de alimentar seus filhos. Sempre que se quer democratizar a terra e a sociedade o nome é reforma agrária. Não tem outro jeito. Foram repelidos como comunistas que queriam acabar com a sagrada propriedade da terra e da família. Armou-se uma guerra histérica contra a ameaça à liberdade que só existia para a minoria.
Os estudantes queriam uma universidade para todos e voltada à realidade nacional. Queriam deixar de ser só os filhos do privilégio, da elite. Queriam se aproximar um pouco mais da sociedade brasileira. Queimaram a seda da UNE no dia 31 de março. Os bancários queriam bancos voltados para o desenvolvimento. Ultraje. Foram cassados.
As associações de bairro queriam casas para as pessoas viverem com um mínimo de dignidade. Mais comunismo! A mudança era apresentada como o atraso. O atraso se apresentava como a salvação nacional. Nunca se viveu mentira maior! Para garanti-la, as armas.
A democracia avançava na consciência e na luta das pessoas, o autoritarismo reagia como se a vida e o destino da elite estivesse definitivamente ameaçado. Lançaram mão da família, da mãe, da mulher, do terço, do rosário, da idéia de liberdade, e de todos os valores capazes de mobilizarem a classe média contra o comunismo! O nome dessa histeria foi golpe militar.
O começo de uma nova era na história do Brasil, o fim temporário de um processo de democratização que ninguém conseguiu parar. Fim do voto. Da liberdade. Da dignidade do cidadão. Começo da tortura, da morte, da tentativa de inibir a liberdade pelo reino do terror.
Até que a volta começou a ser dada graças ao heroísmo de uns poucos e depois de muitos. Lutar contra a ditadura era prova de loucura. Apoiar a ditadura era sinal de sanidade. Custou para que os sinais se invertessem e milhares se lançassem na luta contra a ditadura. O poder se dobrou. A sociedade se levantou, movida a amor pela liberdade.
Mas o golpe deixou uma herança. Deixou um Congresso sem poder e dignidade. Um Congresso corrompido. Um Judiciário domesticado, submisso ao poder de turno. Partidos medrosos e contentes com a dose de poder que tinham. Civis servis de militares arrogantes. Um Estado privatizado.
Mas deixou principalmente a riqueza para uma minoria e a pobreza e indigência para a maioria. Concentrou renda, riqueza como nunca. Transformou o Brasil num grande e triste "apartheid" social. Fez a versão moderna da Casa Grande e Senzala. Reeditou Gilberto Freire.
Hoje os filhos do golpe são 32 milhões de indigentes. As milhares de crianças de rua. Os 2 milhões de crianças de dez a 13 anos que trabalham ao invés de estudarem e brincarem. São 5 milhões de privilegiados que têm tudo no país dos sem nada. É o salário mínimo de US$ 65. Isso é o que vale em termos monetários o brasileiro.
É a terra intocada, os 100 milhões de hectares ociosos. É a polícia violenta, corrompida pelo arbítrio e a impunidade, pelo narcotráfico, mais perigosa que os próprios marginais.
É toda a crise do Estado, que afirma não ter dinheiro enquanto exibe escandalosamente US$ 35 bilhões de reservas, enquanto seu povo passa fome. Das cidades que tratam de recuperar seu espaço de gestores concretos da mudança, da democracia. É a luta contra a corrupção dos que se apropriaram do Estado para fins particulares.
Filhos do golpe também são as cidades onde se concentra a miséria ao lado da riqueza cheia de medo, de sequestro, da violência, dos assaltos. Onde as crianças de classe média não podem ir e onde as pobres vivem. Onde chegam a cada dia os deserdados da terra, mas ainda com vida, lutando por ela.
Mas o golpe produziu também a consciência do valor da democracia, da liberdade e mais importante ainda: do valor da cidadania, como o movimento que produz a democracia. O preço da ditadura foi muito alto. Agora devemos construir a democracia. Esse é o destino que o Brasil merece, hoje, quando alguns fantasmas tentam renascer das sombras. Nossa experiência enterrou o golpe de nossa história. Definitivamente a depender de nós.

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