São Paulo, domingo, 3 de abril de 1994
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Nem todo governo representa o povo

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O povo é representado explicitamente, na Nação e nos Estados, pelos deputados. Em senso estrito, senadores, presidente da República e magistrados não o representam. Parecerá estranho incluir no mesmo conjunto o chefe do Executivo e os senadores, que são eleitos, e os magistrados, funcionários de carreira. Assim é, porém, por definição constitucional.
O parágrafo único do artigo 1º da Carta afirma que todo o poder emana do povo. Ou seja, o povo é a fonte geradora dos poderes do Estado, nascidos da força conjunta dos cidadãos, como se fossem a síntese da vontade popular. A vontade popular se manifesta diretamente ou através de representantes. Estes são pessoas cujo dever é o de atuar apenas em nome e por conta dos representados.
O presidente da República não é eleito para representar diretamente a cidadania, mas para ser o gestor da administração estatal, a benefício de todos. Cumpre missões enunciadas no artigo 84 da Carta, atuando segundo os ditames de sua consciência.
Na comunidade internacional, o presidente representa a nação. Nova estranheza: se o presidente representa a nação e a nação é o povo, como é possível dizer que não representa diretamente o povo? Simples: uma vez eleito e empossado, o titular do Poder Executivo observa os deveres do cargo sintetizados no compromisso de posse em que promete "manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil".
Os magistrados também não exercem representação explícita, salvo os juízes classistas na Justiça do Trabalho. A restrita representação deles corresponde aos empregados e aos empregadores. Relativa a relações de trabalho, não se confunde com interesses gerais do povo.
Os juízes são servidores públicos, como todos os outros. São diferenciados pela nobreza da arte de bem julgar, pelos deveres especiais que as leis lhe impõem e pelas suas garantias constitucionais, imprescindíveis para o bom cumprimento de suas missões. O juiz defende o interesse geral quando atua rapida e diligentemente, aplicando a lei e a interpretando pelo modo mais consentâneo com o justo, compensando desigualdades, quando age assim tanto nos processos cíveis (em que partes disputam o resultado favorável) quanto nos criminais (em que acusação e defesa se digladiam).
Todavia, os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) são mais do que simples juízes. Atuam como estadistas. Sua missão precípua de guardar a Constituição lhes atribui o pesado encargo de dizerem a última palavra a respeito de cada debate sobre o direito aplicável. Assim se explica a frase "decisão do Supremo não se discute, cumpre-se". Em um sistema legislativo fechado, sempre há de haver o órgão que diga a palavra final sobre a lei a aplicar. No Brasil, esse órgão é o STF.
As explicações que venho de enunciar pretendem esclarecer as funções dos exercentes do poder de governo. Poder de governo é mais do que o do Executivo. Integra todos os órgãos da administração, incluindo legisladores e magistrados, a atuarem com independência e em harmonia. Desserve o povo aquele que quebra a harmonia com questiúnculas das quais, depois, se arrepende. O dono de todo poder tem o direito de mostrar insatisfação pelos meios a seu alcance. É bom lembrar disso.

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