São Paulo, domingo, 3 de abril de 1994
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Fenômeno da adaptação nociva e inflação

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A biologia ensina que a capacidade de adaptação às variações do meio é parte do repertório básico de sobrevivência dos organismos. A hibernação, por exemplo, é um comportamento adaptativo que reduz o dispêndio de energia e a necessidade de alimento do organismo, viabilizando a sobrevivência de certos animais na travessia do inverno. A rigidez comportamental em situação adversa –a tentativa de continuar vivendo como se nada estivesse acontecendo– fatalmente condenaria estes animais à extinção.
Mas isto não significa, contudo, que todo comportamento adaptativo seja eficaz ou benéfico para quem o adota. Há casos em que a saída encontrada pode tornar-se ela mesma parte do problema. Quando isto acontece, a adaptação se revela inadequada e acaba se transformando não em solução, mas em obstáculo adicional à solução do problema. Uma adaptação nociva pode ser tão prejudicial quanto a rigidez comportamental.
Um ótimo exemplo biológico de adaptação nociva é reação do organismo humano a uma situação de privação alimentar prolongada. O que acontece quando uma pessoa se vê forçada, por qualquer motivo, a passar uma longa temporada sem ter o que comer? Como reage o nosso organismo quando ele é submetido aos rigores da fome, isto é, a uma dieta que é suficiente para não morrer, mas que fica muito aquém da que seria necessária para garantir um suprimento adequado de calorias e nutrientes?
Para suportar os rigores da fome, o organismo se curva diante dela. Pesquisas com populações subnutridas e experimentos controlados a que foram submetidos cobaias humanos voluntários –as evidências são apresentadas e analisadas por Partha Dasgupta em seu monumental tratado sobre as causas da miséria humana ("An Inquiry into Well-Being and Destitution", Oxford University Press, 1993)– revelam que a adaptação à má-nutrição se dá por meio de dois mecanismos básicos.
Um deles é a adaptação fisiológica. As fibras musculares ficam atrofiadas, os processos metabólicos se modificam para garantir o máximo aproveitamento dos alimentos ingeridos e o aparelho digestivo sofre uma significativa contração. O outro mecanismo é a adaptação comportamental –a sonolência, o marasmo, a indisposição a qualquer tipo de esforço e a propensão ao fatalismo.
O efeito de tudo isto sobre o indivíduo é duplo. Por um lado, a adaptação à fome é funcional. Ela melhora as chances de sobrevivência do organismo à privação alimentar e diminui o custo físico e psicológico de suportá-la. A contração do estômago, por exemplo, reduz a sensação de dor e desconforto associada à fome. O fatalismo doma o desespero e leva a "uma aceitação maior de tudo".
Por outro lado, contudo, este mesmo processo adaptativo acaba condenando o indivíduo a uma existência na franja da sobrevivência, tornando-o incapaz de reagir e tomar iniciativas para enfrentar positivamente o problema. A mesma contração do estômago que lhe traz certo alívio, reduz em caráter permanente a sua vitalidade e vigor físico. Se o fatalismo apazigua, ele também leva o indivíduo a crer que não há nada que possa fazer para melhorar sua condição. A perdição do faminto é a sua fome.
Mas o fenômeno da adaptação nociva não pára por aí. A generalização da indexação no Brasil –um mecanismo adaptativo sem paralelo no resto do mundo– ilustra com perfeição a possibilidade de ocorrência da adaptação nociva no campo da economia.
A inflação crônica e ascendente a que foi submetida a nossa economia nos últimos anos levou os agentes a criarem mecanismos extremamente sofisticados e perversos de convivência com ela.
Ao invés de enfrentarmos o mal –o que exigiria arcar com o ônus de erradicar a praga inflacionária do ambiente econômico–, fomos nos adaptando progressivamente a conviver com ele; usando toda a nossa criatividade e capacidade de acomodação para este fim.
Ao não permitir que o mal se tornasse agudo e insuportável, a indexação também impediu que se formasse o consenso e se mobilizasse a coragem e a determinação necessárias para acabar de uma vez com ele. Como observou recentemente "The Economist", em matéria sobre o Plano FHC, "os brasileiros foram espertos demais para o seu próprio bem".
Assim como no caso da fome, o processo de adaptação nociva à inflação pode ser decomposto em dois mecanismos básicos.
Primeiro, existe um elemento comportamental. São os hábitos e expectativas adquiridos em função da necessidade de sobreviver num ambiente inflacionário. Eles são fruto de um longo processo de aprendizagem sobre como agir para não perder e, se possível, até ganhar, por conta das transferências de renda provocadas pela inflação.
Os exemplos disto estão por toda a parte. Eles vão desde o hábito de usar cheques para transações triviais e concentrar as compras no início do mês, até o "alerta permanente", no sentido de proteger rendimentos, explorar brechas contratuais e antecipar medidas do governo.
Como esperar que um empresário se ocupe de ganhos de produtividade na margem de 1% a 2% ao ano, que é o que prevalece em ambientes competitivos e estáveis, se um lance bem (ou mal) dado no cassino financeiro obrigatório pode significar ganhos (ou perdas) de mais de 1% a 2% ao dia?
O outro processo adaptativo é de caráter mais estrutural e corresponderia ao componente fisiológico no exemplo da fome. A convivência prolongada com a inflação acarreta profundas distorções alocativas no sistema produtivo. Qualquer negócio que recolha grandes massas de dinheiro à vista de seus clientes e que possa servir-se do recurso por algum tempo, torna-se uma verdadeira mina de aluvião.
O melhor exemplo disto é a notória hipertrofia do sistema bancário e das redes de supermercado no Brasil em relação ao tamanho de nossa economia. Este, no entanto, é apenas o lado mais visível do problema.
Na prática, ele afeta um sem-número de atividades como, por exemplo, a relação entre livreiros e editores ou entre restaurantes e bares e seus fornecedores. Um dos efeitos do ganho inflacionário colhido pelos que estão na ponta do varejo foi um crescimento artificial deste segmento da economia.
É por estas e outras razões que venho insistindo na tese de que sair da estufa inflacionária será um processo bem mais difícil e delicado do que muitos imaginam. Pior que isso, só mesmo continuar na estufa.

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