São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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DUPLO DIAGNÓSTICO

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"– Contra a moça do tempo, toda embonecada dando suas previsões para o amanhã impecável: receito secas intermináveis, rios temporários, tufões, terremotos, o inesperado vendaval que varra do mapa a cara previsível do mapa e da moça meteorológica. (TRABALHO DESDE OS 12 ANOS PARA NADA, anotou na margem.)
No take, no close, a negrinha sertaneja da serra do Gibão. Ao fundo, o São Francisco, a largura do rio de barro, de baldo, o riobaldo das correntezas, o rio do Chico nacional."
– O o quê? –certificou-se, interrompidas projeção e notas pela empregada que entrou no quarto. Precisava despedi-la. Trabalhava desde os 12 anos e nenhum reis-reais que pagasse a moça. Nenhum reis-reais!
A empregada repetiu a pergunta. Tratava-se do fiofó da galinha: o fiofó, se aproveitava, se não aproveitava. Cara a cara com a empregada, nem sempre entendia o que ela dizia. O móbile de pássaros de cerâmica pendia do teto sobre a cabeça da empregada. Era preciso piedade.
– Você termine com a galinha e volte aqui, por favor –disse, retomando projeção e notas.
"– Contra a harmonia das orquestrações inimigas, obra dos amigos dos falsos amigos: receito a artilharia da escola superior de guerra; e as ilhas escabrosas, desertas, que só produzem unzelas e cabras bravas. (DEVIA TER ROUBADO DELES, FURTADO, ME SAFADO, anotou na margem) Fotografia: a menina da serra do Gibão (A NEGRINHA LOBATIANA, A GAROTA CHAPLINIANA, A CHAPEUZINHO SEM COR, anotou na margem) vive adotada, borralheira num canto do mocambo, a dois dias de 1994, lavando os mesmos pratos na beira do rio Preto, rio marrom, tinindo, tinto feito ela, tão tinto retinto que tem tons de cor de vinho. A menina é um tiçãozinho de gente, pobre entre pobres, na pobreza fluvial e afluente do São Francisco, o Chicoião."
– Sim, pode dizer –a empregada intrometeu-se, voltando.
Interrompendo projeção e notas (precisava despedi-la), ergueu o olhar de constrangimento que se ergue para os cegos. Pois desde que descobrira que a empregada não sabia ler, tratava-a com o inevitável remorso que sentia pelos cegos. Era preciso piedade. Piedade como?
– É sobre esse meu móbile dos pássaros de barro... Esse que eu trouxe de Tracunhaém. Toda semana aparece um pedaço quebrado, na asa, no bico.
A empregada não respondeu.
– Você deixou cair no chão? Foi você?
Móbile oscila de leve sobre cabeça de empregada imóvel. Empregada finge pegar algo no chão. Como alguém pode ser empregada? pensou. Como alguém pode ser pior que eu? pensou, retomando projeção e notas:
"– Contra a felicidade obrigatória da dinâmica dos grupos: receito-me, eu só, eu irregular, eu ilegal, eu incompatível, eu inclassificável, sem herança, sem esperança, sem sobrenome. (ERA ROUBAR, AMEALHAR, VENCER, ENRIQUECER COMO ELES, anotou na margem.)
A imagem, o movimento, o som, o sofrimento: de noite, a negrinha aninha-se perto dos restos de brasa do fogão a lenha, o vento frio da serra esgueira-se como inseto pelas frestas da palha de buriti do telhado. Apagado o último candeeiro, adormece com medo: teme pelas árvores lá fora, as gameleiras plantadas no meio mesmo da escuridão, mais solitárias ainda, iluminadas somente pelo piscar esporádico dos vaga-lumes, os troncos marcados de escaras, as árvores velhas, resistindo à invasão assombrosa da noite. Como alguém pode ser árvore?" (TRABALHO! TRABALHO A PQP, O C, O C! anotou na margem.)
Tornando a interromper projeção e notas, volta-se para empregada que aguarda:
– Hein, esse móbile, foi você? A culpa é sua?
– Culpa? –a empregada explode subitamente. – Culpa! Culpa é essa coisa que você carrega entre as pernas e faz de conta que não sabe. Culpa é a siririca, a jeba!
"Diafilme: A um dia de 1994. De tarde, no lavar os pratos de depois do almoço, a menina em câmera lenta chega a ver a serpente fazer rebojo na água do rio Preto, formar cachoeira na contracorrente (O RUÍDO É COMO DE UM BARCO A VAPOR, anotou na margem). A sucuri esverdeada desliza pelo rio seu tronco de escaras pretas, barriga amarela. A sucuriju dá um salto só, ligeira em seus dez metros, enlaça a negrinha inteira. Ouve-se um único hum, e logo a menina abraçada, envolvida pelos anéis da cobra, bêbada do vinho tinto do rio, partida, triturada, os olhos aboticados despedindo-se das gameleiras, dos pequizeiros, da merda toda acumulada no mato da ribanceira do rio onde todos cagavam. Era ali o banheiro do mocambo, ali para cus, fiofós, sobrecus. Como alguém pode ser cobra?" (TRABALHO!, anotou na margem, TRABALHO É PRA COMER, FILHINHOS DE PAPAI DE UMA FIGA!)
Encerrada a projeção. É que a empregada veio se desculpar, veio confessar que andava comendo os pássaros de barro, o barro dos pássaros, o móbile, quebrando pedacinhos e roendo, mastigando, chupando todo dia um pouco, devido à irresistível vontade inexplicável de comer do barro vermelho, isso só, só isso só...
– O quê?
– Não sei por o quê...
A empregada tatu, jeca, não sabia que tinha o Necator americanus, o mal-da-terra, o amarelão na luz intestinal, que alimentava lombrigas, ascárides infestando-lhe as tripas cheias da farinha do barro, da cerâmica de Tracunhaém, da argila nacional do rio São Francisco descendo em corredeiras tão largo tão lindo.
Teve uma vontade mista, de chorar e gargalhar, olhando ali para a empregada que mais parecia um dos bonecos de barro de Vitalino. Mas o telefone tocou alarmado. Recusavam seu argumento, seu roteiro, cineasta que jamais seria, uma pena, pois tinha o imaginário cheio de barro, de amor pela terra, pelo vermelhão da chuva de enxurrada do rio do Chico, pela gente e pela técnica da gente dos bonecos de barro. (CONTRA A FRAUDULENTA LOTERIA DAS PROPRIEDADES, RECEITO A DESCRENÇA NOS BENS DA TERRA, DANE-SE, teve o cuidado de anotar).
– Você fica, Francisca – concluiu, para a empregada.
Contra a dura realidade, a batalha de sua vida, não aceitavam a receita de seu diafilme honesto, sua própria película cortada. Tudo o que vivia, tinha que viver na pele? Como alguém pode ser eu? pensou. Trabalhava desde os 12 anos para absolutamente nada. Todas as suas histórias eram verdadeiras, reais em excesso –comprovadamente irremediáveis. Chorou. Dia perdido? Dia inteiro. Dia e meio. Saiu voando pro cinema.

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