São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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LUXO

Não vou investir milhões para empregadas com diarréia

LUIZ VILELA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Então ele pegou a planta, abriu-a lentamente sobre a mesa e falou:
"Nós vamos ter de fazer algumas modificações..."
"Modificações?", eu falei.
"Nós vamos ter de aumentar uns cinquenta centímetros na sala."
"Cinquenta centímetros?", eu falei.
"Ela está meio pequena."
"Pequena?"
"Você sabe", ele falou: "o pessoal anda querendo salas cada vez maiores; a sala sendo grande, o resto do apartamento pode ser do tamanho que for."
"Tá", eu falei: "eu sei disso; mas..."
Eu então expliquei para ele que para fazer o que ele queria, aumentar cinquenta centímetros daquele lado da sala, eu teria de tirar cinquenta centímetros do banheiro da empregada; e aí o banheiro, que já era pequeno, ia ficar do tamanho de uma caixa de fósforos –ia ficar do tamanho do banheirinho da piada.
"Piada?", ele falou. "Que piada?"
"Você não conhece?", eu perguntei.
"Não", ele falou, "não conheço nenhuma piada."
Eu contei: o cara lá comendo a empregadinha no banheiro do apartamento, os dois mandando brasa; e então a menina, depois de já ter gozado, vendo que o cara continuava mexendo, perguntou: "Você não gozou ainda não, bem?..." "Gozar, já", ele respondeu: "eu estou agora é tentando tirar o cu da maçaneta."
Ele deu uma risadinha, uma risadinha amarela.
"A piada é boa", ele falou; "é uma boa piada; mas a sala vai ser ainda melhor, se nós aumentarmos os cinquenta centímetros."
Eu falei que eu não concordava –que eu não podia concordar.
"Por quê?", ele falou: "Qual é o problema?"
Eu falei que não havia problema nenhum.
"Eu não posso concordar", falei, "por uma questão de humanidade."
"Humanidade?", ele falou. "Diminuir cinquenta centímetros num banheiro de empregada é falta de humanidade?"
"Dependendo do caso, é", eu falei.
"Nesse caso é?", ele falou.
"Eu acho que é", eu falei.
"Não dá pra empregada cagar?", ele falou.
"Bom", eu falei, "se ela cagar de lado, dá."
"Então?", ele falou: "O principal é dar pra cagar; se é de lado ou de frente, isso não importa."
"Não?", eu falei.
"Pra mim não", ele falou.
"Você caga de frente ou de lado?", eu perguntei.
"Eu cago de frente, porra, mas, qual é? Muita empregada não tem em casa nem onde cagar, caga na fossa!"
"E daí?", eu falei.
"Daí? Daí, porra, que pra quem não tem nem onde cagar, cagar num vaso já é um luxo, seja de frente ou de lado, de pé ou de cabeça pra baixo."
"Sei..."
"Mas é claro!"
"Tá..."
"Veja", ela falou: "vamos analisar friamente: quantas vezes por dia uma pessoa caga?"
"Não sei", eu falei, "não sou expert em cagar."
"Quantas vezes?", ele falou.
"Bom", eu falei, "se a pessoa não está com prisão de ventre, pelo menos uma vez por dia eu acho que ela caga."
"Então?", ele falou: "O que é cagar uma vez por dia com, digamos, um pouquinho a menos de conforto? Será que isso é pedir demais?"
"Eu acho que é", eu falei.
"Se uma pessoa ainda cagasse várias vezes por dia...", ele falou.
"Quem está com diarréia caga", eu falei.
"Mas, porra, meu, nós vamos fazer prédio pra empregada que está com diarréia, é?..."
"Por que não?", eu falei. "Empregada não é gente?"
"É gente, porra, é gente; só que, dois pontos: eu não vou fazer um prédio, não vou fazer um investimento de milhões de dólares para empregadas que estão com diarréia. Será que alguém discordaria de mim?..."
"Eu discordaria."
"É?"
"Eu discordaria."
"Quer dizer que você faria um prédio de milhões de dólares para empregadas que estão com diarréia..."
"Eu faria."
"Muito bem...", ele falou.
Enrolou então rapidamente a planta e estendeu a mim:
"Pois faça: faça o seu prédio para empregadas que estão com diarréia."
"E você?", eu falei. "Por que você não vai cagar de cabeça pra baixo?"
Não, eu não falei isso. Mas devia ter falado.

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