São Paulo, segunda-feira, 11 de abril de 1994
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O grande recreio

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – A idéia foi do padre Cipriano: o cardeal proibira o futebol no seminário, ele arranjou um terreno não muito distante, mandou colocar as traves, aterrou as poças de lama e, nas tardes de quinta-feira, quando tínhamos o recreio de quatro horas, promovia um tenebroso racha que espatifava canelas e reputações. Jogar nos times do padre Cipriano equivalia –para pior– a jogar no bicho do Castor. Donde: a lista do padre Cipriano era mais letal do que a do Castor.
Não era como o bicho do Castor que é feito às claras e sustenta movimentos comunitários. Os dois times que se armavam eram passaporte tanto para a expulsão como para o inferno. Rosnava-se que o cardeal declarara que a desobediência equivalia à excomunhão "ipso facto": bastava bater um escanteio e o sujeito podia preparar as banhas para serem eternamente derretidas nas profundas do inferno.
Mesmo assim, além dos dois times havia o banco de reservas –que era numeroso. Tão numeroso que um dia foi infiltrado por um sujeito de péssimas entranhas, bom em Salústio e em fazer églogas à Virgílio, mas ruim de bola e de caráter. Eternamente barrado, ele deixou um bilhete anônimo na capela.
Foi mais ou menos o que está havendo com a lista do Castor. Todos tiraram o seu da reta, menos padre Cipriano que heroicamente assumiu. Falaram que ia ser suspenso de ordens ou mandado para o Acre. Estranhamente –tantos anos passados até hoje não compreendi– ele foi promovido, primeiramente a cônego, logo a mosenhor, afinal, tinha três doutorados em Roma e era considerado o melhor latinista abaixo do equador.
Nem sei por que lembro o padre Cipriano numa hora de aflição como essa. Não estou sugerindo que o Castor seja promovido –a barra dele realmente sujou– mas acho que o Brasil está ficando parecido com um colégio interno. O grande recreio das quintas-feiras é maior, dura toda a semana, dura séculos. Em algum lugar, tem sempre alguém ou um grupo fazendo coisas indevidas. Nunca chega a hora de tocar o sino acabando o recreio e mandando a gente para a sala de aula.

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