São Paulo, quarta-feira, 13 de abril de 1994
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Shiró mostra coerência na metamorfose

CARLOS E. UCHÔA FAGUNDES JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Esta é a última semana que São Paulo tem para ver a retrospectiva de Flávio-Shiró no MASP. São 50 anos de pintura sempre viva, numa trajetória marcada pela coerência.
Neste país tão lento em reconhecimentos, é rara a oportunidade de ver o trabalho de um artista radicado há tantos anos em Paris, mas cuja obra, afinal, é um elo importante para a compreensão da pintura brasileira. Pensemos nos desdobramentos de uma figuração que nasce no abstracionismo informal dos anos 50, do qual ele foi pioneiro entre nós.
Shiró foi trazido ao Brasil na primeira infância por um pai que, dentista bem situado no Japão, tinha também sua índole de artista visionário, e via no Brasil uma expressão paradisíaca.
Os anos iniciais de Shiró em Tomé-Açu, no Pará, foram marcantes para sua visão do mundo como mistério e maravilhoso. Na luxuriante natureza amazônica, com cipós ondejando e igarapés lodosos, onde jacarés e sucuris batiam em seu barquinho de criança, Shiró apreendeu a dimensão formidável da metamorfose, da transformação contínua, da vida-morte, sombra-luz.
E o que é sua pintura, senão metamorfose, embate ondulante de estratos pictóricos que se tramam? Shiró faz emergir da superposição de estratos livres, residuais, compostos de pinceladas soltas, como por milagre –naquela circunstância agônica de desenlace imprevisível– a conformação de uma figura, ou, mais importante, a coordenação de um espaço imantado em composição.
Por sobre esses estratos de cor, Shiró galvaniza uma composição e uma figura, tecendo grafismos a fusain. Seu traço requintado acha qualidade na precisão e –paradoxalmente, porque o fazer é abundante– na economia.
A obra de Shiró é toda coerente porque desde um dos primeiros auto-retratos (década de 40), exposto no MASP, traz já a mesma estrutura de pinceladas estratificadas, que inesperadamente se tramam, articulando o quadro, e formando a figura, emersa da luz. Em seus trabalhos mais recentes (década de 90), acontece o mesmo, embora a surpresa se adense e a tensão pictórica seja maior, depurada por uma vida de trabalho.
Mas não é só isso que permanece. É sobretudo um outro dado, ligado à "mitologia pessoal", que é duradouro e explica sua obra. A estrutura espacial em Shiró se baseia numa redobra continua sobre si mesma, como num impulso centrípeto que, figurativamente, se exprime pela recorrência de um olho-umbigo, ao mesmo tempo ovo, cabeça, feto, útero, uma forma oval irregular.
E a redobra, ou voluta barroca a expandir-se no espaço criando infinitudes que, paradoxalmente, são recessivas, uterinas. É o espaço infindável do transformar-se, da metamorfose, do fim-começo, morte-vida, como que eternas raízes num campo lodoso, nicho de vida, nutritivo e trágico.
Não á toa, Paulo Herkenhoff, num texto do catálogo, usa como epígrafe versos de "Terra Desolada", de T.S. Eliot: "Abril... germina/ lilases da terra morta, mistura/ memória e desejo, aviva/ agônicas raízes com a chuva da primavera./ O inverno nos agasalhava... nutrindo com secos tubérculos florecem e voltam a fenecer, estiolando-se como nas cabeças-óvulos-nós." Como nós lacanianos, que imbricam os vários níveis da vida humana, aqui se cruzam figuras e procedimentos plásticos.
As figuras nunca são elas mesmas nem seu puro simbolismo narrativo, mas nutrem uma discussão intimamente plástica. A união desses dois aspectos é clara na figura recorrente do olho-umbigo. "O olho é um acento no quadro", diz Shiró. Cria um compasso plástico com jogos entre o visível e o intuído, refletindo sobre a criação e o devir.
Ao tensionar a pintura entre o problema plástico e a iminência narrativa, Shiró trama esses dois fios de maneira inextricável. É por isso que sua presença é indispensável na consideração da pintura brasileira, sob pena de minimizar esse embate, no qual repousa toda a riqueza da pintura. A força de Shiró está em andar a vida inteira num fio de navalha conciliando milagrosamente os vários extremos que a pintura pode oferecer.

Exposição: Trajetória - 50 anos da pintura de Flavio-Shiró
Onde: Masp (avenida Paulista, 1.578, tel. 251-5644)
Horário: De terça a sexta das 13 às 17h, sábado e domingo, das 14h às 18h. Até 17 de abril
Preço: CR$ 1.100

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