São Paulo, quarta-feira, 13 de abril de 1994
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Por uma ética da responsabilidade

RUBENS RICUPERO

Nunca é demais repetir, com a força dos sentimentos mais profundos, o credo no valor supremo da liberdade. Nós brasileiros estamos aprendendo todos juntos a viver em democracia. E estamos aprendendo depressa, vencendo etapas que outras sociedades levaram décadas, até mesmo séculos, para consolidar.
Infelizmente, a pressão das dificuldades cotidianas, a luta pela sobrevivência travada incessantemente pela maioria de nossa população ofusca o brilho dessa conquista: havermos construído a liberdade, havermos assegurado voz e capacidade de ação a todos os segmentos da grande nação que somos.
A esse orgulho de sermos cidadãos de uma das maiores democracias do mundo, devemos somar a cada dia um esforço de reflexão individual e coletiva sobre o desafio de fazermos da liberdade o melhor e o único caminho para a solução dos gigantescos problemas que temos diante de nós.
É crucial que sejamos movidos, desde o início, não pela angústia da derrota, de havermos sido incapazes de garantir condições de vida digna à maioria dos brasileiros, mas pela confiança da vitória, de que, apesar do atraso, e ao contrário do que ocorre em muitos outros lugares, o Brasil pode –e vai– erguer o seu futuro num ambiente de paz e liberdade.
No pronunciamento que fiz ao receber o cargo de ministro da Fazenda, no último dia 5, anunciei duas palavras-de-ordem de minha gestão: continuidade e responsabilidade. A primeira nós podemos assegurar com a manutenção da equipe e a fiel observância dos fundamentos e compromissos firmados no programa de estabilização da economia. Já a segunda, que podemos chamar "ética da responsabilidade", transcende evidentemente o âmbito do Poder Executivo, alcançando os demais Poderes, níveis de governo (estadual e municipal), e, em última instância, o conjunto da sociedade.
A Constituição descreve os Poderes da União como "independentes e harmônicos entre si". O predomínio de um desses Poderes nos períodos autoritários de nossa história explica a maior ênfase que se atribui ao princípio da independência. Alcançado, porém, o pleno Estado de Direito, a outra condição torna-se igualmente vital. Os três Poderes devem ter sempre presente a diferença do papel de cada um e, partindo de tal premissa, compartilhar a responsabilidade pela manutenção de perfeita harmonia entre eles, para que todos possam cumprir sua missão. Não é correto atribuir apenas ao Executivo o dever de superar ocasionais –e naturais– desencontros.
Igualmente crucial é zelar para que essa relação entre os Poderes não se transforme numa espécie de "jogo de soma zero", em que as ações de cada um acabam por anular-se mutuamente, com óbvio prejuízo para os interesses da coletividade.
O peso das intenções, por melhores que sejam, não se pode sobrepor à verdade dos resultados. A ética das intenções é a de Jesus no Evangelho: o pequeno óbulo da velhinha vale mais aos olhos de Deus do que a grande soma dada pelo fariseu para ser admirado. Na vida política, porém, o que conta é a ética da responsabilidade, segundo a qual cada um deve responder pelas consequências de seus atos.
Dias atrás, a questão surgida a respeito da interpretação da medida provisória 434 acabou felizmente dirimida pela reedição daquele ato (MP 457). Caso, no entanto, se tivesse aceito o aumento de quase 11%, e se o mesmo se houvesse estendido igualmente aos demais servidores da União, as despesas com a folha de pagamento teriam sofrido um acréscimo de nada menos que US$ 2,6 bilhões!
Quando, por exemplo, alguns propõem elevar para US$ 100 o valor do salário mínimo, fazem-no como se pudessem simplesmente passar a fatura ao Executivo, sem indicar como esse aumento seria financiado.
Não resta dúvida de que o governo também desejaria que o salário mínimo fosse mais elevado. Duas condições para fazê-lo, no entanto, estão nas mãos do Congresso Nacional, particularmente neste período de revisão constitucional. De um lado, o vínculo entre o salário mínimo e os benefícios da Previdência Social, por mais desejável que seja, faz com que um aumento como o pretendido seja inexequível, uma vez que literalmente estouraria o já alquebrado caixa do sistema previdenciário (apesar da arrecadação recorde este ano, de US$ 24 bilhões, a União terá de bancar um déficit de US$ 2 bilhões; isto sem aumentos do salário mínimo em dólares).
De outra parte, tem efeito semelhante o fato de se haver estabelecido, na Constituição de 1988, um salário mínimo nacionalmente unificado, por mais justo que pareça. Como supor que uma prefeitura do interior do Piauí ou da Paraíba poderia pagar o mesmo que um município do chamado "ABC paulista", tanto aos seus servidores em exercício, como à aposentados e pensionistas (em certas secretarias estaduais de educação já existem mais aposentados, muitos prematuramente, do que ativos)?
Haveria inúmeros outros exemplos a mencionar. Entretanto, para o argumento deste artigo, interessa deixar claro que uma ética da responsabilidade exige que o propósito dos atos seja compatível com as consequências dos mesmos, e que todos sejamos igualmente responsáveis por essa compatibilidade. Nosso sistema político deve urgentemente tornar-se capaz de traduzir verdadeiras boas intenções em autênticos bons resultados.

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