São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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Liberalismo e a entropia da informação

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECAESPECIAL PARA A FOLHA

Os poetas sempre souberam. A entropia da informação afeta toda a comunicação humana. Qualquer mensagem, por mais trivial que seja, sofre um processo de perda e dissipação –daí o termo entropia– ao ser transmitida de A (emissor) para B (receptor). Armadilhas é que não faltam.
Nenhum A é capaz de antecipar e controlar o uso que B fará de suas idéias ou o significado que B pode atribuir a suas palavras. Para qualquer A, é impossível dizer uma única coisa. Se A diz "x", B não entenderá só e exatamente "x". B pode entender "x" e mais alguma coisa; "x" e menos alguma coisa; ou até mesmo "z". Como reclamou certa feita Mário de Andrade: "Pensei que discutiriam minhas idéias, discutiram minhas intenções".
A realidade e o alcance da entropia da informação foram estudados em detalhe pela moderna psicologia experimental. Um breve relato, por exemplo, que é transmitido serialmente de boca em boca por um certo número de indivíduos, vai sofrendo alterações cumulativas ao longo do caminho, até se tornar algo inteiramente distinto do que era na origem. A análise dos resultados obtidos é conclusiva –mesmo mensagens simples em séries curtas sofrem alterações surpreendentes.
O que a psicologia moderna ilustra, Baudelaire já intuia: "O mundo gira somente através dos mal-entendidos. É pela universalidade dos mal-entendidos que todos concordam. Pois se, por má sorte, as pessoas se entendessem uma às outras, elas jamais concordariam".
A história das idéias econômicas fornece um formidável laboratório para o estudo da entropia da informação. Escolha qualquer grande obra ou economista do passado. Sobre cada um deles, uma coisa é certa: ao seu redor existe hoje um pequeno batalhão de especialistas espalhados pelo mundo e discutindo minuciosamente o que o autor "realmente quis dizer".
É possível passar uma vida fazendo isso. A máxima de Rilke define bem a situação: "A fama é a quintessência dos mal-entendidos que se juntam a um nome".
Alguns autores tiveram o privilégio de se deparar pessoalmente com mal-entendidos gerados por suas idéias. Adam Smith, por exemplo, ao comentar seu encontro com o primeiro-ministro britânico, William Pitt, que o chamara da Escócia para fazer calorosos elogios sobre a "Riqueza das Nações", simplesmente observou: "Mas que homem extraordinário este Pitt, ele me faz entender as minhas próprias idéias melhor do que eu as entendia antes".
A entropia da informação, é claro, não respeita barreiras de língua, nacionalidade ou ideologia. É pena que Marx nunca tenha podido assitir a uma aula sobre materialismo dialético dada por Stalin.
Mas, quando seu futuro genro, o militante francês Paul Lafargue, veio lhe mostrar um manuscrito de sua lavra intitulado "O Materialismo Econômico de Karl Marx", o pai da coisa não teve dúvidas: "Se isto é o marxismo, então eu não sou marxista".
Em 1983, no suposto auge da política monetarista nos EUA, foi a vez de Milton Friedman protestar: "Se a política seguida pelo Federal Reserve é monetarismo, eu não sou monetarista".
Pior sorte teve Keynes. Podemos apenas especular sobre como ele teria reagido ao presenciar Nixon adotando o controle de preços às vésperas da eleição e saindo-se com esta: "Agora somos todos keynesianos".
Como estes exemplos sugerem, quando se trata de usar e abusar de autores e teorias sobre os quais pouco se sabe além do nome, o céu é o limite. Mais estapafúrdio do que tudo isso, no entanto, é a enxurrada de asneiras sobre o liberalismo e o neoliberalismo com que as páginas de opinião da imprensa brasileira vêm nos brindando ultimamente.
Quando eu era estudante de graduação, nos anos 70, as "contradições do capitalismo" resolviam qualquer parada. A safra quebrou, a Bolsa caiu, a meningite explodiu, o trânsito piorou, a criminalidade aumentou, o vazio existencial bateu –não tinha o menor problema.
Tudo era rigorosamente "explicado" como refletindo, em última instância, o acirramento das contradições imanentes ao capitalismo. A História era uma auto-estrada e cabia na palma da mão.
Como percebi anos mais tarde, deve ter sido um ambiente intelectual semelhante a este que levou Schumpeter a comentar, sobre o terremoto de Tóquio de 1924, que pelo menos um efeito salutar ele teve –ninguém acusou o capitalismo de ser responsável por ele.
É compreensível que, de uns tempos para cá, a obsessão com o capitalismo tenha arrefecido. São poucos os fósseis que ainda se animam em atribuir a "ele" a culpa por todos os males e infortúnios do mundo.
O problema, contudo, é que agora o mesmo espaço conceitual que costumava ser ocupado pelas "contradições do capitalismo" parece ter encontrado um novo par de inquilinos –o liberalismo e seu neto caçula, o neoliberalismo.
Do que ainda não foram acusados, no Brasil, estes verdadeiros monstros doutrinários do nosso tempo? Para uns, eles fazem parte de uma sórdida conspiração internacional, sediada em Washington, para manter os países pobres na pobreza e os ricos no poder. Para outros, trata-se de "uma ofensiva da direita" que "retrata o consumo popular como inimigo dos interesses nacionais".
Um sociólogo do Cebrap acusa o neoliberalismo pela prática da eugenia na China. Sarney vem a público anunciar, em tom de descoberta, a "falência do liberalismo".
Um escritor da velha esquerda carioca fica indignado com a análise de Roberto Campos sobre os limites da campanha de Betinho e abre fogo contra o que imagina ser a "mão invisível" de Adam Smith. A CNBB lança uma cartilha eleitoral alertando para a terrível ameaça representada por esse inimigo da "democracia popular", que é o neoliberalismo...
Má-fé, ignorância, falta de assunto ou entropia da informação? Provavelmente uma mistura, em doses variáveis, de todos eles. No fundo, o que esta amostra e tantos outros equívocos do gênero revelam é tão-somente o mais pavoroso malentendido acerca do que venha a ser o objeto de sua crítica.
A julgar pelo que a esquerda brasileira vem escrevendo sobre o tema, a conclusão melancólica é que o diagnóstico feito por Paul Baran nos anos 60 não perdeu a atualidade. Como dizia o expoente da "nova esquerda" norte-americana: "O drama dos países subdesenvolvidos é que neles até o pensamento de esquerda é subdesenvolvido".
EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA, 37, é professor da Faculdade de Economia da USP e autor de "Beliefs in Action" (Cambridge University Press) e "Vícios Privados, Benefícios Públicos?" (Companhia das Letras).

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