São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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Dumping social e os trabalhadores do mundo

EDWARD J. AMADEO

O tema da flexibilidadedo mercado de trabalhoainda dará muito"pano pra manga"

O sucesso econômico do sudeste asiático põe a nú a fragilidade das generalizações e mesmo da ideologização, das ciências sociais. Utilizada pelos apologistas do livre mercado no início dos anos 80 como caso exemplar, hoje está mais do que claro que se há casos bem-sucedidos de intervenção do Estado na economia, eles devem ser buscados no Japão e na Coréia.
A nova onda é usar o modelo de mercado de trabalho asiático como paradigma. De novo, só a teimosia ou a ideologia justificam a busca de generalizações desse tipo.
Ouve-se com frequência que o mercado de trabalho na Coréia, por exemplo, é "flexível". Traduzindo, isto quer dizer que não há restrições para demitir trabalhadores, que os custos para fazê-lo são baixos, que a hora-extra é barata, que não há regras rígidas –legais ou negociadas– a definir as condições de trabalho. Pode ser verdade.
Mas é preciso lembrar que a economia coreana há décadas experimenta crescimento e que, portanto, a "flexibilidade para demitir" não foi ainda testada. Mais que isto, que a despeito dos salários crescerem em média 10% ao ano, os custos do trabalho não aumentam porque a produtividade do trabalho na Coréia cresce tanto ou mais que os salários.
É preciso lembrar ainda que o nível de educação e treinamento dos trabalhadores industriais coreanos é tão ou mais alto que o dos trabalhadores europeus, o que significa que parte da flexibilidade deve estar associada à flexibilidade do trabalhador coreano –e não do mercado de trabalho coreano– para adaptar-se a novas situações e demandas.
Mas o que importa é a versão, nem tanto o fato. Cada um define flexibilidade como bem quer e dado que o sudeste asiático é bem-sucedido, por que não dizer que o trabalho no sudeste asiático é flexível como eu defini flexibilidade?
Fábricas com chão de terra batida, longas jornadas de trabalho e inexistência de regras para demissão sem justa causa. Eis a chave do sucesso do coreano! É óbvio que nem os liberais mais ousados diriam que esta é a chave do sucesso japonês.
O tema da flexibilidade do mercado de trabalho ainda dará muito "pano pra manga". Isto porque interesses poderosos se colocam contra e a favor da flexibilidade definida pela facilidade para demitir e reduzir salários e ausência de regras sobre condições de trabalho.
Entre os que estão a favor encontram-se o Banco Mundial e intelectuais, inclusive brasileiros, que vêem no debate europeu sobre a flexibilidade do mercado de trabalho semelhanças com o nosso problema.
O raciocínio é o seguinte: numa economia globalizada, os Tigres Asiáticos, com sua força de trabalho barata e flexível, estão abocanhando o mercado internacional de manufaturas com baixo conteúdo tecnológico. Logo, a única saída para o Brasil é flexibilizar o mercado de trabalho nos moldes asiáticos.
Curiosamente, o maior aliado dos que estão contra a flexibilização nos termos definidos acima são os trabalhadores e sindicatos dos países ricos. Não porque exista um movimento de solidariedade humanista internacional. Nem porque os sindicatos americanos finalmente deram ouvidos a Marx, que no Manifesto Comunista escreveu "Trabalhadores do mundo, uní-vos".
A razão é banal: existe a crença –também carente de provas– de que o desemprego nos EUA e Europa se deve à competição desleal dos países do Terceiro Mundo, com mercados de trabalho muito flexíveis.
Os sindicatos americanos estão financiando sindicatos independentes no México, para que estes tenham força para lutar contra a brutal flexibilidade do mercado de trabalho mexicano. Como os sindicatos nos EUA têm alguma influência no Partido Democrata do presidente Clinton, o movimento contra o excesso de flexibilidade no México já ganhou espaço na agenda oficial.
Os EUA exigem que o dumping social passe a ser discutido nas reuniões da Organização Mundial do Comércio que sucederá o Gatt. Ótimo, agora os que defendem a flexibilização dos mercados de trabalho na América Latina terão que duelar o Departamento de Estado norte-americano.
É perversa a visão de que a forma de concorrer internacionalmente seja através de salários baixos e da precarização das condições de trabalho. Um trabalhador da indústria alemã ganha dez vezes o que ganha o trabalhador brasileiro, quando o diferencial de produtividades é certamente menor que dez.
Em nome da competitividade brasileira pode-se demandar que o salário no Brasil caia ainda mais? Que tal investir na diminuição do hiato de produtividade?
Nada do que se disse ainda deve ser interpretado como um ataque à idéia de flexibilidade. A flexibilidade é um imperativo em um ambiente altamente instável. Mas a ausência de regras e salvaguardas pode levar a um tipo de flexibilidade indesejável.
Instituições e regras que induzam empresas e trabalhadores a demitirem e se desligarem de seus empregos, respectivamente, com a frequência com que isso ocorre no Brasil, claramente não contribuem para o crescimento da produtividade, nem para a formação de trabalhadores com o perfil exigido para que eles –e não apenas o mercado de trabalho– sejam flexíveis.
A legislação que regula os processos de demissão sem justa causa e desligamentos voluntários no Brasil induz uma enorme rotatividade e flexibilidade do mercado de trabalho. Portanto, enganam-se redondamente ou não conhecem os dados os que crêem que o mercado de trabalho no Brasil não é flexível.
Ao contrário, é flexível demais e pelas razões erradas. O importante não é eliminar a legislação, pretendendo com isto aumentar a flexibilidade. Mas alterá-la para reduzir a flexibilidade bastarda.

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