São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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Pornografia e estilo em "Hamlet'

GERALDO DE CARVALHO SILOS

Pornografia e estilo em "Hamlet"
A obscenidade da peça de Shakespeare decorre da necessidade dramática

O médico irlandês Thomas Bowdler (1754-1825) gostava, como Karl Marx, de ler as peças de Shakespeare em voz alta para a mulher e os filhos. Mas, ao contrário do filósofo, escandalizava-se com os termos e trechos pornográficos e os omitia. Com o propósito de facilitar a leitura caseira do poeta, Bowdler e sua irmã, Henrietta Maria, decidiram editar as obras completas de Shakespeare expurgando do texto (cito o clínico) "as palavras e expressões que não podem ser lidas em família". A edição censurada saiu em 1818 e intitula-se "The Family Shakespeare".
A iniciativa teve tal êxito que o sobrenome do médico-editor -Bowdler- passou a verbo e é usado correntemente até hoje. Veja-se no "Oxford English Dictionary" "bowdlerize": "expurgar (um livro, um escrito), omitindo ou modificando palavras consideradas indelicadas ou ofensivas; castrar". (Note-se a definição final: "castrar").
Na verdade, muito anos, Samuel Johnson teve vontade de eliminar alguns trechos de "Hamlet" e cortou duas linhas de "Romeu e Julieta". Outro precursor do irlandês, certo padre Ignatius, considerava Shakespeare o melhor veneno para contaminar os jovens. Mas não tomou iniciativa alguma. Já o reerendo Pitman lançou, em 1822, o "Shakespeare para a escola". Mas só teve grande sucesso editorial o "Family Shakespeare", do qual se tiraram quatro belas edições. (Animado pelo sucesso da iniciativa, Bowdler expurgou também "The Decline and Fall of the Roman Empire", de Gibbons.
A idéia de castrar o texto de Shakespeare continua vivíssima: ainda há poucos anos uma editora americana lançou "Hamlet" e "Romeu e Julieta" sem os vocábulos picantes e cenas impróprias paa menores. Incrivelmente, Boris Pasternak saltou-os na sua tradução de "Hamlet".
O que Bowdler e sequazes não compreenderam: Shakespeare –no seu "realismo mágico", como Croce definiu o seu estilo– detestava a vulgaridade e só empregou vocábulos e passagens pornográficas por necessidade dramática. Seus personagens não são desenhos animados, mas seres de carne e osso, que se exprimem como gente; usam pornografia para extravasar sentimento particular atípico em determinada conjuntura ou em decorrência do seu caráter (como Falstaff e Polonius) e até com objetivo político (como Hamlet, quando finge de louco). É o ator quem fala, exprimindo o que sente e não o autor. Dick, em "Henry 4º", grita: "Matemos todos os advogados!" –opinião do personagem autônomo no palco, e não do poeta.
Lembre-se que entre os 700 protagonistas das peças só há duas prostitutas. E o Globe Theatre se situava na zona de meretrício de Londres, com bordéis até para gays. Philip Henslow e Edward Alleyn -sócios de Shakespeare na companhia teatral– eram também proprietários de uma cadeia de prostíbulos. Como empresário, naturalmente Shakespeare procurava faturar o máximo, o que não o levava, porém, ao uso de palavrões para atrair os "frequentadores das torrinhas" (ou puleiros) –ironizados maliciosamente por Hamlet.
A pornografia, ao contrário, decorre de necessidade da dicção dramática; é elemento estilístico. Suprimi-la, como fazem tantos tradutores brasileiros, espanhóis, italianos e franceses, constitui ato policial de censura. Ou de ignorância. E há glossários especializados que ajudam o tradutor.
Em "Hamlet" –talvez a peça mais pornográfica– os personagens que empregam maior número de palavrões são o Príncipe de Elsinore (fingindo de louco quase sempre e com objetivo político); Ofélia, depois de enlouquecer; e Polonius –dois terços por safadeza e um por senilitude.
Aponto a seguir alguns termos e cenas pornográficas, reproduzindo o texto da minha tradução (Editora JB).
No final da cena 1 do ato II, Ofélia, desesperada, conta a seu pai a estapafúrdia visita que recebera de Hamlet. Muito mal vestido e sem chapéu -índice de perturbação mental na época-, o Príncipe entrou na sala de estar de Ofélia e segurou-a pelo pulso, apertando-a com violência. E se mandou, sem dizer nada. Ofélia confessa a Polonius que Hamlet enlouqueceu por amor. Depois de ouvir a nervosa narrativa (cheia de erros no tempo dos verbos), Polonius ..........
POLONIUS - "... lamento muito não o ter observado com maior atenção e discernimento. Temi que estivesse apenas mentindo para enganar você e que tivesse a intenção de deflorá-la (p. 38).
O verbo-chave da frase: "wrack ....." ou "deflorá-la, segundo Partridge e Mu.....). Polonius, que, por motivos políticos e pessoais, já torcia pelo desvirginamento de Ofélia pelo príncipe herdeiro, passa a arquitetá-lo, como se verá depois.
No final do solilóquio "ser, ou não ser", Hamlet repentinamente enxerga Ofélia, ajoelhada, rezando - pura e bela como a Virgem nas grandes pinturas do Renascimento. Tenso ainda na meditação final do monólogo, Hamlet se esquece de que deveria fingir de louco e a ela se dirige com ternura. Subitamente e por ordem do pai (que a estava vigiando), Ofélia devolve a Hamlet as cartas e presentes que dele recebera, num rompimento brutal. Hamlet perde a cabeça e, depois de áspero e constrangedor diálogo, berra-lhe: "Casa-te com um imbecil, pois os homens mentalmente equilibrados sabem muito bem em que cornos ("monsters") vós, mulheres, os transformais" (p. 64). E, para arrasar a "linda Rosa de Maio", manda-a para um bordel ("nunnery"). Samuel Johnson, de esplêndida penetração crítica, mas tantas vezes pudico, estranha o procedimento de Hamlet. Aí me parece, contudo, que Hamlet não banca o doido: exprime-se com revolta e nojo, pois pode ter descoberto Polonius, escondido, a orientar a filha - linda, mas sem a força de caráter de Julieta ou de Cordélia.
Antes da apresentação de "A Pantomima" -a peça dentro da peça-, Hamlet, agora definitivamente fingindo de louco e buscando convencer todo mundo da sua insanidade, desacata Ofélia perante a corte inteira. Acontecia que nas reuniões sociais da época os rapazes costumavam reclinar o rosto no colo das moças, antes pedindo-lhes permissão para fazê-lo. Hamlet aproveita-se do hábito de cortesia para transformá-lo num passo de alcova:
"Hamlet – Senhora, posso reclinar a cabeça na vossa boceta?
Ofélia – Não, Alteza!
Hamlet – Quero dizer: reclinar a cabeça no vosso colo?
Ofélia – Sim, Alteza." (p. 70).
Por que Ofélia responde negativamente à primeira pergunta? Porque aí "lap" significa "órgão genital feminino" e não "colo" – O sentido da segunda pergunta. Não há dúvida alguma sobre o significado "boceta" para "lap", pois registra-o "Oxford English Dictionary" (substantivo 2 b), confirmado por Hulme, e Partridge em Evans. Entretanto GIDE TRASLADA O Termo a "genoux"; Salvador de Madariaga, a "regaço"; D. Luís de Bragança, a "estar aos vossos pés"...
Hamlet insiste em provar a sua demência. E prossegue:
"Hamlet – Pensais que me estava referindo a foda?
Ofélia – Não penso nada, Alteza.
Hamlet – É uma bela idéia deitar-se na posição de coito entre as pernas das virgens.
Ofélia – O que é, Alteza? (p. 70).
Hamlet – Talvez sejais tão casta que não tenhais sexo entre as pernas.
Ofélia – Estais com humor obsceno, Alteza" (p. 70).
"Country matters" equivale a "foda", para Booth e Jenkins. Partridge (o maior conhecedor da pornografia shakespeareana) mostra que "lie" iguala a "deitar-se na posição de coito". Para chegar a "Talvez sejais tão casta .... pernas" (o equivalente a "nothing") fundamentei-me em Nigel, Partridge e no ensaio de T. Pyle, intitulado "Ophelia's Nothing".
Mas Hamlet não sossega. Investe novamente contra Ofélia numa imagem revoltante, considerada por Goddard como o trecho mais sórdido da peças:
"Hamlet – Se pudesse ver a bolinagem entre vós e o vosso amante, seria capaz de produzir um diálogo para o ato.
Ofélia – Estais sensualmente excitado, Alteza.
Hamlet – Custar-vos-ia o grito de dor do defloramento para acabar com o meu tesão." (p. 74).
Traduzi a primeira frase de Hamlet escorado em Jenkins. "Grito de dor do defloramento" ("groaning") vem de Nigel e de W. Empson, em "Hamlet when new". E tesão é 'èdge", segundo Colman. (A melhor explicação: Malcolm Evans, "Signifying Nothing").
Na "closet scene" (início da cena 4 do ato III), Polonius esconde-se atrás de uma tapeçaria para ouvir a conversa entre Hamlet e Gertrude. Percebendo que algo se movia atrás do estofo, Hamlet atravessa-o com a espada e mata Polonius. É, pelas suas conseqências políticas, talvez o "turning point" da tragédia. Trava-se estarrecedor diálogo entre mãe e filho. Hamlet não finge de louco – procura mostrar a Gertrudes a sordidez da sua conduta incestuosa (segundo a moral da época):
"Hamlet – Só pensar que viveis no suor fedorento de uma cama suja de porra, encharcada na depravação, fazendo sacanagem fodendo num antro de orgia bestial, nojentamente sujo." (p. 83).
(Trecho suprimido pela editora norte-americana).
Os significados: "fedorento" - "rank" (charney); suja de porra: "enseamed" (Partridge, Edwards); fazendo ... fodendo" – "homeying and making love" (Partridge); "antro... bestial" – "sty" (Johnson, Schmidt). Segundo Eastman, Hamlet expele uma espécie de "vômito sexual". E Sagar: "a linguagem aqui sugere que Hamlet está no ponto de vomitar. "Nigel refere-se aos "pormenores suarentos" da cópula entre Gertrude e Claudius.
Em seguida, numa belíssima exortação, Hamlet procura convencer Gertrude a abster-se de relações sexuais com Claudius. Mas depois, julgando que a mãe não o obedeceria, muda de idéia:
"Hamlet – ... deixai-o que, por um par de trepadas imundas ou por bolinar o vosso seio com dedos amaldiçoados ..." (p. 91).
"Kisses" são "trepadas" e não "beijos" (Partridge); Hubler define "reechy": "imundas"; como em "The Winter's Tale", "paddling" equivale a "bolinar" (Paffard); e "neck" não passa de "seio" (Partridge).
Noutro ato, Ofélia – inteiramente louca – entra no palco "tocando alaúde, cantando e com os cabelos caídos", na rubrica do primeiro in quarto. ("Cabelos caídos", numa jovem da corte, em sinal de maluquice). Enlouquecera por amor a Hamlet, exilado na Inglaterra. No seu desvario, Ofélia canta, imaginando que o Príncipe a havia desvirginado, num eco de que ouvira antes:
"Por Jesus e por caridade,.
Ai! ai de mim! Que horror-obscenidade!
Os jovens copulam ao chegar à puberdade.
Por Deus, a culpa é deles.
Ela diz: "antes de me desvirginares
prometesse comigo te casares."(p. 104).
"Horror" é o português para "lie", na opinião de Lott. Em "Shakespeare's Festive Comedy", G. L. Barker mostra que "do it" traslada "copulam" e Partridge acompanhá-lo. J. D. Wilson explica que "ao chegar à puberdade" equivale a "come to it". E Spencer: "tumble" – "desvirginares".
Há muitas outras passagens e palavras pornográficas na peça. Entre as últimas, veja-se: "drab" (prostituta), "havours" (partes sexuais); "Secret parts" (órgãos genitais) e "scullion" (prostituto). Mas não seria objetivo examiná-lo fora do contexto.
Dou o último exemplo. Liga-se logicamente ao primeiro: "wracj thee" (desvirginá-la). Para provar ao Rei e à Rainha que Hamlet queria possuir Ofélia sexualmente, Polonius trama encontro entre os dois e assevera que em certo momento, "soltarei do laço minha filha para ele" ("I will loose my daughter to him"). Ora, empregava-se o verbo "to loose" para descrever a soltura de uma novelha num curral para ser coberta pelo touro. (O "Oxford English Dictionary" assim define o verbo: "soltar, libertar, livrar uma pessoa, um animal ou os seus membros de vínculos ou restrições físicas".
Mas a metáfora continua. Polonius diz à Rainha: "Fiquemos, vós e eu, atrás de uma cortina de tapeçaria. Observemos o pega amoroso." (p. 44).
Solto no jardim do palácio (imagina o velho e meio gagá primeiro ministro), Ofélia seria estuprada por Hamlet num "pega amoroso" ou "encounter" (Partridge). A expressão "pega amoroso" desdobra a conotação de "to loose", num importante desenvolvimento temático. Não se pode suprimi-la ou abrandá-la na tradução. Seria "bowdlerizar" o texto; castrá-lo. "O estilo incorpora o sentido", no dizer de Ewbank.
No "Style in Hamlet", Maurice Charmey analisa admiravelmente o emprego do verbo "to loose", considerando-o o mais ofensivo de toda a tragédia. O emprego do verbo não decorre de capricho do dramaturgo: surge de imposição temática; desprende-se da sujeira do caráter de Polonius. É a destilação da personalidade no estilo, como explicou Arthur Sewell.

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