São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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'A Adalgisa' transborda de simpatia pelo mundo

MARCELO COELHO

Carlo Emilio Gadda utiliza prosa sofisticada e uma graça irresistível em contos sobre Milão

Sente-se uma certa inquietação ao ler as primeiras páginas deste "A Adalgisa", coleção de contos do escritor italiano Carlo Emilio Gadda.
Tantas são as referências ao ambiente urbano de Milão ("Quadros Milaneses" é o subtítulo da obra), vazadas numa linguagem riquíssima, carregada de dialetos, termos técnicos e eruditos, que a primeira idéia é a de que estamos diante de um texto a rigor intraduzível: um pouco como se fôssemos italianos lendo Guimarães Rosa.
Mas vale a pena. Trata-se de uma prosa certamente "experimental", moderníssima, que deve bastante a James Joyce; o enredo dos contos é por vezes difícil de seguir, a quantidade de digressões, desvios e brincadeiras da narrativa é imensa. De cada história ressalta, entretanto, um calor humano, uma graça, uma vibração de vida irresistíveis.
A volta dos operários para casa, no fim do dia; um concerto de música moderna nos começos do século em Milão; um acidente de lambreta no meio da rua; a falência de uma empresa encarregada de conservação de assoalhos: dessa banalidade, desse ridículo sutil de todos os dias, Gadda extrai verdadeiros universos.
Nunca sabemos ao certo qual o rumo, qual o tom que o narrador irá tomar. A bufonada erudita pode escurecer-se subitamente, numa anotação casual sobre a temperatura da noite ou sobre as folhas das árvores. A pobreza urbana ou a decadência da aristocracia são retratadas com volúpia e barroquismo. É como se o autor fugisse de si mesmo, dos sentimentalismos imediatos que seu tema pudesse impor.
Dois procedimentos são empregados nessa estratégia de fuga.
O primeiro é o da imitação, do pastiche: Gadda macaqueia modos de falar, perde-se na linguagem alheia e na própria língua. Incríveis afetações de vocabulário aparecem para dar conta dos fatos mais corriqueiros.
A lição, aqui, talvez não seja tão de Joyce mas sim de Flaubert. O leitor de "Madame Bovary" conhece, sem dúvida, o uso que Flaubert faz dos clichês, das frases feitas, não raro destacadas em itálico no meio do texto. A atracão pela burrice, pela besteira, pelo erro, pela impropriedade de linguagem, fizeram de Flaubert algo como um sádico no estilo, um mestre da crueldade realista.
O espírito de Gadda é menos o da frieza documental, do desprezo sarcástico, e mais o de um caloroso deboche. É um autor minucioso nos retratos que faz, mas sobretudo expansivo, incontrolável. É como se as locuções pinçadas em itálico por Flaubert ocupassem quase que a totalidade do texto. Cada conto de Gadda parece ter sido escrito de viés, entre aspas, entre parênteses.
Outro procedimento de fuga é utilizado pelo autor, no sentido de evitar efusões líricas e demoras sentimentais. Gadda faz uso de notas de rodapé em seus contos.
O efeito é divertidíssimo. Instaura-se uma desconfiança maluca face a cada linha escrita. Assim, Gadda critica, por exemplo, um termo que ele próprio usou, chamando para uma nota de rodapé onde diz: "galicismo horroroso". Ou então se entrega a digressões científicas, históricas, arquitetônicas, que nada teriam a ver com o sentido do enredo. Ele se auto-interrompe a qualquer momento.
James Joyce tirou maravilhas da linguagem científica, da precisão técnica da química e da engenharia, no penúltimo capítulo de seu "Ulisses". O mesmo jargão científico é usado por Gadda em suas notas de rodapé. Mas a amplitude de suas digressões, a alucinação informativa que toma conta deste "A Adalgisa" lembra outro precursor distante: Rabelais. O latinório, o popularesco, o escatológico, o difícil e o vulgar aparecem em Gadda com alegria verdadeiramente diabólica.
O gosto pela confusão marca, sem dúvida, o modernismo. Trata-se de uma reação mimética, não raro desesperada, diante de um ambiente urbano caótico, da febre industrialista, da incompatibilidade de hábitos e de linguagem entre classes sociais levadas a uma convivência, a uma promiscuidade impensáveis antigamente.
Gadda é, neste sentido, um modernista, embora sua produção literária se tenha feito nos anos 30 e 40, depois do "boom" das vanguardas. O adesismo ao "mundo moderno", a mania futurista dos aeroplanos e obuses, pôde assim matizar-se, ganhar mais simpatia humana.
Acima de tudo, recobriu-se de modéstia. Gadda é modernista, mas não messiânico. Não está preocupado em inaugurar estilos, em instaurar realidades. Ao contrário, suas notas de rodapé e suas macaquices estilísticas têm um conteúdo autocrítico. Como se o deboche sentimental, nostálgico, que ele dirige à sociedade milanesa fosse também um deboche ele próprio.
Dessa estratégia literária resultam alguns problemas. O principal é que, ao contrário dos modernistas da primeira hora, Gadda não quer nem consegue transmitir uma "cosmovisão" completa do mundo em que vive. O autodesmentido irônico, o enciclopedismo de suas citações parecem minar o que ele escreve.
O resultado é que seus contos ou romances são notoriamente inacabados. Alguns contos de "Adalgisa" serviram para compor seu romance "O Conhecimento da Dor" (ed. Rocco, 1988). Seu romance policial-caótico "Aquela Confusão Louca da Via Merulana" (Record) tem uma história interrompida. Os contos de "A Adalgisa" muitas vezes continuam-se uns aos outros, mas acabam quando menos se espera.
De certo modo, há a tentativa, que o autor sabe impossível, de abarcar a totalidade do mundo. Esclarecimentos científicos, digressões renascentistas, preciosismos barrocos, ocupam a obra de Gadda, como se a realidade empírica boicotasse a visão pessoal que o escritor quer transmitir.
O principal, entretanto, é que Gadda não parece ver essa impossibilidade como uma frustração, como pretexto para a melancolia. Entrega-se à confusão do mundo, desorganiza o seu próprio texto, fazendo dele uma crítica barroca do cotidiano e de si mesmo.
Há poetas da ordem (Wallace Stevens, Valéry, Rilke) e poetas da desordem (Dylan Thomas é meu preferido). Gadda é um poeta da desordem, desordem humana, incompreensibilidade mútua das classes sociais, festa das informações disparatadas; mas não a expressa com esgaras de tédio ou histerias anojadas (Eliot, Pound). Sua simpatia pelo mundo é irresistível.

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