São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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Liberalismo e moblilização

PAUL SINGER

O economista Paul Singer contesta o artigo "Militância e Participação", do filósofo José Arthur Giannotti
Não consigocompreendertanto receio damobilização dacidadania
De onde eletirou a idéiade que o aliadoPFL não vaiafetar o PSDB?

A polêmica tão oportunamente aberta por José Arthur Giannotti há cerca de um mês está enveredando por novos caminhos, em função da liberdade que ele se deu, na resposta a Maria Victória Benevides e a mim (Folha, "Mais!", 10.04.94, págs. 6-8 e 6-9), de abordar assuntos totalmente diferentes, embora ligados à presente conjuntura político-eleitoral polarizada pelas candidaturas de Lula e Fernando Henrique.
Passarei ao largo as considerações puramente pessoais, observando apenas que Giannotti e eu nos conhecemos há muitas décadas e nossa amizade certamente está acima de divergências conjunturais –o que deve nos dispensar de julgar a simulação ou a franqueza do outro.
Quanto à campanha de Betinho, cujos objetivos hoje a esquerda e o PT em particular priorizam, como aliás é público e notório, convém notar que ela já superou sua fase inicial "assistencialista" e se empenha em mobilizar sociedade e Estado para a geração de empregos. Esta, infelizmente, não é "uma preocupação sobretudo da direita", como Giannotti pensa e o Betinho pertence ao lado de cá, como ninguém ignora.
O tema novo e altamente relevante que Giannotti aborda em seu último artigo é o impasse em que se encontra o país, para o qual a única saída seria "pagar o preço duma rápida integração na nova ordem internacional irremediavelmente globalizante. No entanto, por causa do seu desemprego estrutural, crescerá o apartheid social, se um Estado pequeno, forte e hábil não implementar políticas sociais compensatórias".
A dificuldade em aceitar esta tese começa pelo fato de que o Brasil já está integrado até as orelhas na nova ordem internacional. Basta olhar os números de nosso comércio externo para comprová-lo. É verdade que os fanáticos pela exportação sempre terão motivos para lamentar as oportunidades perdidas de aumentar ainda mais nossa participação no mercado mundial, mas é inegável que o regime militar revitalizou aquela integração e desde então ninguém a debilitou.
Antes pelo contrário, a abertura do mercado interno mediante o rebaixamento das barreiras tarifárias foi efetivada pelos governos civis, completando a referida integração para ninguém botar defeito. Ou vamos acreditar que o tratamento pretensamente discriminatório do capital estrangeiro pela Constituição de 1988 está impedindo a vinda de investimentos estrangeiros? Parece óbvio que o obstáculo a estes investimentos de fora é o mesmo que sufoca os de dentro: a super-inflação e as sucessivas recessões desencadeadas para combatê-la.
O ponto central da questão é o diagnóstico da crise. Para a direita liberal, a causa da crise está na hipertrofia do Estado, no desperdício de recursos atribuído indiscriminadamente ao setor produtivo estatal e nos obstáculos à acumulação de capital privado que seriam representados pelos monopólios estatais de petróleo e telecomunicações.
Para a esquerda, a causa da crise está nas tentativas fracassadas de estabilizar os preços quase sempre às custas da remuneração do trabalho, que estreitaram o mercado interno, fragilizaram as finanças públicas, estrangulando o investimento produtivo privado e público, tanto nacional como estrangeiro. Para a direita, a retomada do desenvolvimento não prescinde de um impulso externo a ser suscitado por algo como a "rápida integração na nova ordem internacional".
Para a esquerda, a retomada do desenvolvimento –uma vez superada a crise inflacionária– deve ser impulsionada pelo alargamento da demanda interna, proporcionado pela integração de milhões de marginalizados ao trabalho produtivo e ao consumo.
Não há necessidade de extremar a diferença. Os liberais certamente acreditam que a integração no mercado internacional gerará empregos aqui dentro reduzindo a exclusão social. Mas nada justifica esta crença e Giannotti não alimenta ilusões a respeito. Só que ele pede políticas compensatórias de um desenvolvimento condicionado pelo mercado mundial.
O PT prefere inverter a ordem dos fatores: o desenvolvimento deve ser puxado pela redistribuição da renda e pelo resgate da dívida social e complementado por uma adequada integração do Brasil no comércio internacional. O projeto de programa de modo algum despreza a necessidade do país se expor à competição internacional, como acicate imprescindível ao desenvolvimento das forças produtivas. Mas subordina esta necessidade à prioridade maior de elevar a renda dos miseráveis, de levar o desenvolvimento às populações abandonadas ao atraso e de reconstruir e expandir os serviços sociais, a começar por saúde e educação.
Isto significa antes de mais nada que a agenda, que Giannotti considera essencial ao país, não é ignorada e muito menos rejeitada pela esquerda. O projeto de programa do PT sem dúvida se preocupa com a reforma do Estado, com a necessidade de devolver eficiência e dinamismo às estatais produtivas, com a reordenação de atribuições e recursos entre os diferentes níveis de governo e com a privatização de empresas estatais não-estratégicas. Mas ela recebe um tratamento muito diferente do que lhe é dado pelos que apostam exclusivamente no mercado como saída para o impasse em que nos encontramos (entre os quais Giannotti não se inclui).
A propósito, não discordo de Giannotti quando diz que "desapareceu de nosso horizonte prático o ideal de uma economia sem que haja produção de mercadorias e mercantilização da força de trabalho". A sociedade que a esquerda almeja terá mercados porque não conhecemos outras instituições que possam preservar as liberdades individuais de escolha, tanto do trabalhador de optar entre diversas formas de participar da divisão do trabalho quanto do consumidor de optar entre formas diferentes de satisfação de necessidades.
Mas, "o mercado não favorece a distribuição da renda e a redução das desigualdades sociais". Além disso, o mercado "impõe aos produtores sua própria racionalidade. Muitas ações perfeitamente justificadas tendo em vista as necessidades do conjunto de um país ou de toda humanidade a longo prazo não são percebidas por esta via" (Projeto de Programa de Governo do PT, item 26, p.42).
O desafio consiste em combinar direitos e liberdades individuais, que exigem mercados para serem reais, com mais igualdade e mais democracia no usufruto da riqueza social e na condução dos processos econômicos e sociais. Igualdade e democracia exigem canais de negociação entre as classes e "empowerment" que não tem correspondente em português, mas significa algo como "conferir poder" exatamente àqueles que estão fadados a perder no jogo do mercado, por falta de propriedade e de qualificação profissional valorizada.
Isso leva ao outro tema tratado por Giannotti, o da democracia, a respeito da qual a esquerda brasileira tem feito avanços consideráveis. Para começar, a adesão ao multipartidarismo é obvia, portanto não se objetiva suprimir o adversário –e não inimigo– mas vencê-lo eleitoralmente respeitando escrupulosamente o direito dele de tentar o mesmo.
Seguem daí as consequências que Giannotti aponta: que a existência daquele que discorda é essencial ao processo democrático e que a alternância no poder é indispensável, não só para evitar a burocratização do governo, como ele escreve, mas também para reduzir a possibilidade de corrupção, da qual ninguém está a salvo.
Mas, a questão realmente vital e complicada é a da representação. Há diversas formas de representação e a tradição da esquerda –pelo menos da que se origina da Comuna de Paris e da teorização da mesma por Marx– é dar preferência às formas que mais prendem o representante aos desejos e preferências dos representados, tais como o mandato imperativo e revogável.
Esta tradição é muito respeitável, mas não considera a necessidade do representante de negociar com outros, que defendem outras prioridades e outros interesses. Ela desconsidera a possibilidade do diálogo com o outro produzir novos conhecimentos e novas possibilidades de resolução dos conflitos em pauta. O aperfeiçoamento da representação rejeita o mandato imperativo, que tende a provocar confrontos sem saída, mas por isso mesmo torna mais urgente estreitar a relação entre representante e representados e dar a estes recursos contra os que traem o mandato que exercem.
A democracia direta e sempre preferível à indireta, desde que seja praticável. Ora, sabemos que a interação que difunde conhecimentos, que permite exercer a crítica e a réplica, que enseja a opcão racional e consciente entre opções não se pode dar em multidões. Logo, em sociedades de massa, como a nossa, a principal forma praticável nas condições hodiernas é a democracia indireta. Mas, ela pode e deve ser aperfeiçoada no sentido de se tornar menos indireta e precisa ser complementada por práticas democráticas diretas.
Não há porque se conformar com as formas rudimentares e defeituosas de representação que hoje se praticam na maior parte dos países. Por que não insistir em suscitar participação popular nas decisões de governo mediante "transparência no governo e ampla informação" ao cidadão, como promete o projeto de programa do PT? Porque não regulamentar o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, previstos na Constituição, para "permitir que a participação popular se faça mais efetiva na democracia brasileira" (ibidem, item 7, pág. 11)?
Giannotti vê estas propostas com a maior desconfiança: uma relação direta do chefe e do governo com a própria sociedade parece-lhe abrir as portas para o populismo e o autoritarismo; enxerga na proposta vários perigos, desde a abolição do saber que a prática representativa promove até "um grupo de militantes se arvora(r) pela tenacidade mas sem mandato representativo formal, em representantes do todo".
Não consigo compreender tanto receio da mobilização da cidadania para participar em algumas decisões especialmente importantes, prática que hoje se generaliza nos Estados Unidos e Suíça, duas das democracias mais antigas do mundo. Também não vejo porque nos conformarmos com o fato da maioria "se alienar da política depois do ato simbólico do voto".
O PT, assim como outros agrupamentos de esquerda, tem tradicionalmente convocado manifestações de massa para pressionar os que dispõem de mandatos. A inesquecível campanha das diretas, de 1984, começou com um comício convocado pelo PT, no qual Fernando Henrique discursou emocionado pela morte ocorrida naquele mesmo dia de Teotônio Vilela. Será que ela representou um perigo para a democracia representativa, como imaginar que ela vá abolir o saber gerado pela última?
Para não deixar pairar qualquer dúvida a este respeito, cito o projeto de programa no mesmo item e página tratados por Giannotti: "O propósito de radicalizar a democracia faz com que o PT coloque a participação popular como elemento tão importante quanto os mecanismos da democracia representativa."
Não vou defender o PT das críticas de ter sido responsável pelo insucesso duma coalizão de esquerda e centro por supostamente ter agido eleitoreiramente e apostado unicamente na possível eleição de Lula. Quem acompanhou as peripécias do governo Itamar poderá julgar por si. Prefiro perguntar de onde Giannotti tirou os elementos de juízo ou de fato para sustentar que a aliança entre o PSDB e PFL de modo algum descaracteriza o primeiro, mas poderá fazer o último avançar a ponto de que "entenda que a descentralização política e administrativa não pode constituir brecha para velhas práticas fisiológicas"?
E o que lhe permite prever que "Fernando Henrique na Presidência, a guinada provavelmente será para a esquerda, pois somente assim poderá manter-se coerente com o seu próprio programa social-democrata"? A atuação dele no Ministério da Fazenda? Ou o Plano FHC? Podemos fazer o juízo que quisermos da atuação recente de Fernando Henrique, mas é preciso um bocado de "wishful thinking" para deduzir dela tais expectativas.

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