São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Compositor firmou o modalismo na MPB

LUÍS ANTÔNIO GIRON

A obra de Dorival Caymmi responde sozinha por um dos momentos capitais da música popular: a passagem do saudosismo tonal para a contemporaneidade modal.
Para defini-la é útil evocar uma sigla, criada por volta de 1964. Caymmi inaugura a MPBM (Música Popular Brasileira Moderna). O termo veio a ser reduzido e já em 1965 esse tipo de música era conhecido por MPB. Caymmi consolidou as formas sonoras que firmaram o que hoje se define por MPB.
Em termos mais concretos, ele forneceu o modelo harmônico para a bossa-nova de Antonio Carlos Jobim e João Gilberto. Desta dupla partiram Edu Lobo, Baden Powell, Chico Buarque, Caetano Veloso, Carlos Lyra e Gilberto Gil.
As cerca de 80 músicas que compôs ao longo de 60 anos de atividade alicerça uma tradição. É um número pequeno, perto dos quase 600 opus de Jobim e os perto de 350 de Noel Rosa. O ócio e o rigor conspiraram contra a produtividade do compositor. Caymmi escreveu em poucos artigos a constituição musical brasileira.
A temática muitas vezes (mas nem sempre) praieira do compositor desvia a atenção. Ele disfarça frequentemente a forma complexa no poeta arcaico de pescadores, coqueiros, mar e lagoa. A paisagem lírica oculta o acorde dissonante.
Como é hábito em arte, o pai da regra foi no início uma transgressão. No caso de Caymmi, um pequeno e inconsciente desvio.
Isso provoca alguns problemas de interpretação. Os estudiosos que se debruçam sobre Caymmi tendem a complicar o objeto em nome do entusiasmo explicativo, do demônio da analogia. Descrevem os acordes de sétima, sexta, quinta aumentada, as inversões de acorde da música de Caymmi como se formassem um arcano secreto. Querem, com isso, derrubar o mito da espontaneidade no compositor.
Por esse raciocínio, "O Mar" (1939) indicaria um intertexto debussyano. As modulações (alterações na lógica linear da série harmônica) da canção seriam fruto de uma leitura do estilo impressionista francês do início do século. Afinal, o próprio Caymmi já disse gostar de ouvir Debussy e Ravel.
Outro argumento a favor do caráter culto de Caymmi está nos próprios músicos, no fato de Caymmi ter inspirado as orquestrações de Jobim e os primeiros discos de bossa-nova.
Não custa lembrar que o marco inicial do gênero, o LP "Chega de Saudade", de João Gilberto, lançado em 1959, já trazia um samba de Caymmi: "Rosa Morena". No seu terceiro disco, de 1961, o cantor interpretava "Samba da Minha Terra" e "Saudade da Bahia", dois sambas de Caymmi. João via em Caymmi a concretização dos poucos acordes e síncopes da sua arte sintética.
Jobim lhe admira as modulações de meio-tom. Baden Powell foi buscar nele a base dos sambas-afros. Edu Lobo se ouve nas músicas do baiano.
O segredo da linguagem musical de Caymmi está na simplicidade e na funcionalidade. Descobriu o ovo de Colombo do canto acompanhado.
Foi autodidata. Começou a tocar violão alterando os acordes perfeitos (dos quais se compõe o sistema tonal), introduzindo dissonâncias, arpejando as cordas com descontinuidade. Possuía na juventude a intuição do artesão, aquele que redescobre e encena nos dedos a história do som.
Afastou-se desde o início com a quadratura do samba e da canção porque adotou o único método que tinha à disposição: o modalismo (sistema baseado em escalas diversas) típico da música afro-baiana. Soube dar leveza às cantigas do candomblé e absorveu o espírito da música da cidade.
Talvez por se esquivar ao quadrado tenha sido adotado pelos grupos vocais dos anos 40, como os Anjos do Inferno, que tentavam a fusão do samba brasileiro com o swing norte-americano. O contorno afro aproximou de viés o estilo de Caymmi ao do jazz. Daí ele soar tão cosmopolita desde a estréia.
Seus sambas-canções –como "Marina" (1947) e "Não Tem Solução" (1949)– podem hoje ser ouvidos como bossa-nova. Nos anos 40, no entanto, se afinavam com o soma urbano e internacional. Essas músicas circulavam na época como qualquer outro produto de consumo, ao lado do baião e do bolero.
O compositor definiu o "lay out" que os músicos postulariam como natureza nos 50 anos seguintes. A harmonia ambígua, a melodia delicada com aparência de improviso, os ritmos elásticos, todos esses elementos se integraram à prática musical. Ele consolidou a linha evolutiva e a linha de produção da MPB. Sem Caymmi, ela teria seguido outro curso. Sabe-se lá qual.

Texto Anterior: Liberalismo e moblilização
Próximo Texto: O 'tesão de boate' na rota da boemia
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.