São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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A favela intelectual de Lacerda

LÚCIA NAGIB

Autor de "Favela High Tech" comete erros preconceituosos e injustificáveis ao retratar a cultura japonesa
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Um livro que em três meses, no Brasil, vende 20 mil exemplares e chega à sétima edição, deve possuir alguma dessas duas características: 1) uma combinação hábil de ingredientes comerciais; 2) um tema de grande interesse atual. É decerto à reunião desses fatores que se deve o surpreendente desempenho de vendas da "Favela High-Tech", do jornalista Marco Lacerda. De um lado, o livro explora a receita básica do sucesso popular: a abundância de sexo e violência. De outro, localiza o enredo no Japão, a potência econômica oriental que, nos últimos anos, se tornou o centro das atenções do chamado Ocidente desenvolvido (Estados Unidos Europa) e, por tabela, de países periféricos como o Brasil.
A escolha do gênero policial, recheado de tramas laterais intrincadas e de suspense, reforça o apelo aos leitores e está na base do deslumbramento da crítica, que raramente ousa contestar as tendências predominantes do mercado. Até agora, a maioria dos comentários a "Favela High-Tech" se limitou a louvar suas qualidades de "thriller", seu ritmo de ação, sua narrativa envolvente, como se o domínio técnico de um gênero fosse suficiente para conferir excelência a uma obra.
De tal modo que acaba se esquecendo do assunto do livro, que pode ser resumido de maneira simples: um manifesto contra o Japão. Um ataque, na verdade, tão virulento, que admira que até agora nenhuma voz de contestação, sobretudo dos diretamente atingidos, tenha se levantado. É maravilhoso que a liberdade de expressão nos dê acesso a toda sorte de opiniões, e mais louvável ainda que o livro esteja sendo nesse momento traduzido no Japão. mas o silêncio em torno das afirmações altamente polêmicas que contém precisa, em algum momento, ser quebrado.
"Favela High-Tech" se autodefine como uma "reportagem-crônica", que narra fatos supostamente reais ocorridos no Japão e testemunhados pelo autor.
Trata-se do assassinato, em Tóquio, de um jovem americano, envolvido com a máfia japonesa ("yakuza") e o tráfico de drogas, e de suas aventuras sexuais, das quais tomava parte uma nikkei brasileira. Essa pretensão à "verdade" dos fatos, expostos em forma de documentário, tendo apenas os nomes de personagens e estabelecimentos substituídos por outros fictícios, abre espaço a seu questionamento. Claramente, a narrativa em primeira pessoa expõe a opinião do próprio autor, e não a de um narrador ficcional. É compreensível que, emocionalmente tocado pela morte do amigo, Lacerda tenha tomado sua defesa. Mas isso não justifica a caricatura grotesca que, em contrapartida, traça dos japoneses, ridicularizando-os de um modo que sequer os filmes americanos do imediato pós-guerra ousaram fazer.
Lacerda começa o livro com a advertência de que, "nos últimos tempos, o Japão voltou a falar de 'yamato gokoro', com a mesma frequência com que o termo 'Volk' era usado na Alemanha nazista para referir-se à supremacia da raça ariana". A partir dessa acusação do racismo japonês, sente-se à vontade para explorar, da primeira à última página, os piores estereótipos racistas contra o Japão. Ao contrário, o protagonista americano Chris é pintado como um ídolo romântico, uma vítima do sistema social e econômico inumano japonês. Mas quais seriam as virtudes desse herói louro, alto e atlético –cujas atividades se limitam a uma busca incessante de lucro com cafetinagem e tráfico de drogas? Nada mais do que possuir um órgão sexual descomunal, que se transforma em objeto de adoração quase religiosa, num país onde as garotas estão fartas das "coisinhas miúdas de seus patrícios" (p. 28).
A superioridade fálica de Chris sobre os nipônicos, repetida como um refrão obsessivo ao longo do livro, é apenas um dos ataques à constituição física dos japoneses, que, segundo acredita Lacerda, se consideram "um dos povos mais feios do mundo" (p. 29). O texto está coalhado de comentários referentes à "extrema falta de graça do homem japonês" (p. 48), ou ao "jeito débil mental (das hostesses japonesas) de saudar os clientes" (p. 48), ou ainda à aparência "medonha" dos "yakuza" (p. 70). Todo cultivo, secularmente praticado, da harmonia comportamental e gestual, a impecável delicadeza e educação, a beleza incomparável do sorriso, da pele, dos cabelos dos japoneses, que surpreendem e encantam os ocidentais desde Francisco Xavier no século 16, escapam a Lacerda. E principalmente os requintes da arte erótica, das mais sofisticadas do mundo, perto da qual as performances sexuais de Chris não passam de brincadeira de criança.
Lacerda prefere se juntar ao coro (que ele mesmo critica) do "Japan bashing", praticado por alguns americanos e estrangeiros que moram no Japão apenas por dinheiro e ignoram tudo da cultura local, mas passam o tempo falando mal dos japoneses. E ainda faz observações curiosas, como: "Ainda está por ser feito o estudo sociológico explicando a força misteriosa que faz com que esses exércitos de mártires marchem diariamente para o trabalho em troca de condições de vida tão precárias" (p. 22). Com isso descarta, de uma penada, todo um batalhão de sociólogos, antropólogos e outros cientistas mundiais que dedicaram a vida ao estudo da estrutura social japonesa, desde a clássica Ruth Benedict até Sugiyama Lebra. A certa altura, descobre com estardalhaço a ausência de um centro de poder no país, como se Roland Barthes não tivesse dissertado longamente sobre o "centro vazio" do Japão, no célebre "O Império dos Signos", escrito nos anos 50.
É que Lacerda não está mesmo interessado no Japão, preferindo adotar a linha do ressentimento que lamentavelmente se espalhou entre certas elites econômicas sobre o país estão cheias de equívocos (acentuados pela má revisão do livro). As notas de rodapé contêm imprecisões do tipo: "Harakiri: suicídio japonês em que a vítima corta o peito com uma faca" (p. 45), quando se sabe que o suicida rasga o próprio ventre. Ademais, os japoneses utilizam o termo "seppuku", mais elevado, em lugar de "harakiri", popular apenas no Ocidente. Chega-se a definir "shamisen", uma guitarra de três cordas e braço longo, como "flauta tradicional japonesa; gíria que quer dizer sexo oral" (p. 11): descuido da revisão? Os termos japoneses raramente estão romanizados de forma correta. Escreve-se "shinkanzen", em lugar de "shinkansen", "yakusa", em lugar de "yakuza", sem mencionar os incontáveis erros de português.
Mas a pérola principal encontra-se na página 102: "O florescimento da indústria e do comércio no Japão não foi acompanhado pelo desabrochar da cultura e das artes comum nos tempos das grandes conquistas econômicas. Além dos carros e das bugingangas (sic) eletrônicas, o país ainda está por oferecer sua contribuição à cultura universal, seja em forma de Literatura, Música, Teatro, o que for. Como lamenta um antropólogo francês, o Japão, por enquanto, é um buraco negro no espaço apenas sugando cultura, mas sem transmitir nenhuma". Gostaria de saber qual "antropólogo francês" teria pronunciado tal barbaridade, ignorando o contribuição cultural e artística inestimável que ofereceu ao mundo o Japão em todos os tempos, em especial no pós-guerra, quando se abriu para o Ocidente. Não há como jogar no lixo algumas centenas de brilhantes artistas contemporâneos, de Mishima à atual "best-seller" mundial Banana Yoshimoto, na literatura; de Kazuo Ohno e Hijikata ao Byakko-sha, no butoh; de Takemitsu a Sakamoto, na música; de Kurosawa a Oshima, no cinema, e tantos e tantos mais.
Mas basta de exemplos. Lacerda quis, certamente, denunciar a impunidade da máfia japonesa, que encontra coniventes na polícia e no governo. Todos os implicados na morte do jovem americano e os que tentaram camuflar o crime devem, evidentemente, ser descobertos e punidos. Mas condenar, por causa disso, um povo inteiro é preconceito racial. E nenhum racismo encontra justificativa racional.

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