São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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O baiano que está sempre em moda

DA SUCURSAL DO RIO

Quando Dorival Caymmi pegou um ita no Norte para tentar a vida na antiga capital da República, era um moço de 23, quase 24 anos, com o mesmo sonho de muito baiano daqueles dias: tornar-se advogado.
Hoje, aos 79, quase 80, é ainda com certo espanto que ele recorda a guinada que sua vida sofreu: menos de um ano depois de desembarcar na Praça Mauá, já se tornara exatamente o que é, ou seja, uma unanimidade nacional como criador e cantador de obras-primas.
É verdade que o moço Caymmi já tocava um violão original, aprendido sozinho em Salvador. E que já fizera rádio por lá. E mais: que já ganhara até um concurso de carnaval.
Mas jamais levara muito a sério sua experiência ao microfone da Rádio Clube da Bahia ou o abajur de seda que "O Imparcial" lhe dera pelo primeiro lugar de "A Bahia Também Dá", feita para a folia de 1936.
Tais atividades musicais alternavam-se com ofícios outros: jornalista, desenhista de cartazes, auxiliar de escritório, vendedor de bebidas.
Segundo seus planos, trabalharia como ilustrador na imprensa, até completar o ginásio e depois fazer a faculdade de direito. Mas logo descobriram seus talentos de modinheiro.
Andou cantando na Rádio Transmissora, foi contratado pela Tupi, passou a ganhar razoáveis cachês e, já em 1939, deu-se o fato que o fez esquecer de vez a advocacia.
Ary Barroso não aceitou as condições oferecidas pelos produtores do"Banana da Terra" para que sua "Na Baixa do Sapateiro" fosse cantada no filme por Carmem Miranda.
Para que não se perdesse o cenário (uma Salvador de papelão), resolveu-se aproveitar, nas palavras de Almirante, "aquele jovem que veio da Bahia cantando coisas de lá". E assim que Carmem lançou "O Que É Que a Baiana Tem?".
O resto, como se costuma dizer, é história. Caymmi de fato conquistou o Rio em tempo recorde. Como também seria impressionante a sua permanência entre os monstros sagrados do cancioneiro brasileiro: de 1939 até hoje, jamais saiu de moda.
O que se deveu, primeiro, ao caráter único de sua voz e sua música. Uma voz poderosa, grave, densa, rústica às vezes, que entrava em cena sem seguir os modelos vocais da época. E uma música com uma rara força poético-melódica, como jamais se fizera antes e como jamais se faria depois.
Mas sua obra seria dividida em três grandes blocos, todos resultantes da vivência pessoal de homem inteligente e atento.
As canções praieiras são as que lhe deram fama. Embora Caymmi deva a elas, talvez, o seu lugar na história, não são necessariamente as melhores. Não quando se recorda "Não Tem Solução", "Nunca Mais" ou "Saudade." É aqui que o Caymmi baiano começa a dar lugar ao Caymmi carioca.
Foi no Rio dos anos 40 que ele começou a criar os sambas-canções que se incluem entre os mais representativos da música romântica brasileira.
Este Caymmi –que ainda hoje se define como "urbano", cujas experiências com a pesca e o mar são meramente contemplativas– é muito diferente do das canções praieiras.
Os que foram colhidos de surpresa ao verem seus sambas no repertório do jovem João Gilberto (e que por isso cometeram o equívoco de considerá-lo um "precursor da bossa-nova") ficaram meio perdidos num primeiro momento.
Pois se a bossa-nova vinha para pôr abaixo tudo que era velho, como explicar a atualidade de um baiano de pés descalços, cabelos brancos, violão rude e poesia sem artifícios?
Em vez de explicar, João Gilberto preferiu cantá-lo. E demonstrou mais uma vez sua permanência. Mas o rótulo de "precursor" continuou.
O terceiro Caymmi destaca-se já nos anos 70, quando suas canções tomam um rumo acentuadamente afro. Ao se tornar Obá de Xangô (espécie de ministro nas crenças do candomblé), ele intensificava suas relações, já antigas, com os cultos negros da Bahia.
Também este Caymmi é um artista exemplar. Sua africanidade está no chão de sua terra natal. Vem diretamente dos antepassados escravos, temperada de um sincretismo tão baiano quanto o próprio Caymmi. Sua avessia à chamada Axé Music é apenas um maneira de manter-se fiel a si mesmo. "O mar, o amor e a fé estão em tudo", observa. De certo modo, é o que suas música vêm dizendo há 60 anos.

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