São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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A volta da tropa do choque

RENEE TWOMBLY

Cada vez mais pacientes nos EUA preferem tratar seus problemas psiquiátricos com sessões de eletrochoque
Cientistasacham que aconvulsão faza química nocérebro 'zerar'
Críticoscomparam aterapia auma pancadana cabeça

Uma mulher de uns cinquenta e poucos anos estava pronta para seu tratamento. Em uma sala do Centro Médico da Universidade de Duke, Carolina do Norte (EUA), ela brincava com cinco enfermeiras, um psiquiatra e um anestesista, dizendo que seu topete de cabelos brancos dificultava a colocação dos eletrodos.
Depois, já com a máscara de oxigênio, um tubo intravenoso para bombear tranquilizantes e relaxantes musculares na veia de uma das mãos, ela adormeceu.
Seus dedos do pé direito iniciaram uma dança convulsiva, como se estivessem tentando acompanhar os traços desordenados dos monitores do coração e do cérebro que estavam ao lado. Trinta e quatro segundos depois, sua convulsão cerebral parou e seu segundo dedo do pé ficou torcido com o dedo maior.
Alguns meses atrás, uma série de tratamentos de choque durante três semanas havia acabado completamente com suas crises de depressão grave e agora ela estava retornando para uma sessão de manutenção a fim de impedir que ocorra uma recaída.
Como dezenas de milhares de pessoas nos EUA, ela apostou que um choque elétrico de apenas dois segundos de duração com menos da metade da potência necessária para queimar uma lâmpada de 40 Watts poderia aliviar sua depressão profunda, afastando dela as idéias de suicídio.
A terapia eletroconvulsiva (ECT) está deixando para trás sua imagem passada e se tornando o tratamento escolhido por muitos americanos que sofrem de depressão grave.
Para os chamados "médicos do choque", em hospitais americanos particulares, e para a maioria de seus pacientes, a ECT em sua forma mais nova e mais desenvolvida é um procedimento médico simples e completo, que apresenta poucas complicações além de uma perda de memória inicial e confusão mental nas horas seguintes ao tratamento.
Após a afirmação da Associação Psiquiátrica Norte-Americana de que a ECT pode produzir bons resultados para mais de 80% dos pacientes com depressão grave, o tratamento vem sendo crescentemente considerado como o mais eficaz disponível hoje em dia para ocasiões em que todas as outras terapias falham.
Em 1986, o último ano do qual se dispõe de dados abrangentes sobre tratamento psiquiátrico, cerca de 36.500 pessoas se submeteram à ECT, um aumento de 15% em relação à 1980. Os pesquisadores estimam que esse percentual seja ainda maior agora.
"Não há dúvida de que a ECT está voltando apesar da sua imagem terrível", diz Richard Weiner, o psiquiatra de Duke que é uma autoridade internacional em pesquisas sobre a ECT. "Pela primeira vez, as pessoas vem a mim pedindo especificamente pela ECT, ao passo que antes eram sempre os médicos que convenciam os pacientes da necessidade de aplicá-la."
Débora Norris, uma enfermeira missionária de 38 anos, não demorou a se decidir em usar a ECT quando o seu médico a recomendou. Sofrendo de um distúrbio de estresse pós-traumático desenvolvido durante os anos em que trabalhou na faixa de Gaza (Israel), ela já havia tentado uma série de antidepressivos que a faziam dormir 22 horas por dia.
"Eu tentei a ECT porque não podia viver daquela maneira. Eu estava apreensiva, mas após a primeira sessão, vi que não havia problema algum," diz ela. Após doze sessões, Norris afirma "eu estou quase como era antes. Se eu tivesse uma crise depressiva novamente, voltaria imediatamente para a ECT".
Convulsão
É a convulsão e não o choque o agente da "cura" da ECT. As origens do tratamento datam do início do século, quando a convicção errônea de que a epilepsia e a esquizofrenia não podiam coexistir em um paciente levou os médicos a induzirem convulsões em seus pacientes para tentar obter uma cura para a esquizofrenia.
Em 1938, o primeiro eletrochoque foi administrado e logo se transformou na principal forma de tratamento médico para os doentes mentais. Havia pouco mais que isso disponível. Mas sua eficácia no tratamento de doenças depressivas levou a um uso excessivo e às vezes abusivo em uma grande variedade de doenças mentais para as quais a ECT era ineficaz.
Quando a primeira geração de medicamentos antidepressivos chegou ao mercado nos anos 60, a ECT foi preterida e restrita aos distúrbios melhor tratados por ela –depressão severa e certos tipos de esquizofrenia. Mas durante os anos 60 e 70, os pesquisadores encontraram maneiras de aliviar muitos dos piores efeitos colaterais da terapia, tais como pacientes que tinham seus ossos quebrados e grave perda de memória.
Agora, os psiquiatras dizem aos seus pacientes que pode haver um comprometimento temporário da memória, mas que a perda grave e permanente desta dificilmente vai ocorrer.
O tratamento de hoje pouco lembra o "bombardeio" descrito no livro "Um Estranho No Ninho" de Ken Kesey. A terapia moderna da ECT faz uso de anestesistas enviar tranquilizantes por via intravenosa para fazer com que o paciente durma, de relaxantes musculares para interromper os espasmos musculares e ossos quebrados, e de máscara para se certificar de que o paciente esteja recebendo oxigênio suficiente.
Quinze minutos
O procedimento passou do quarto simples para uma sala de tratamento mais elaborada, equipada com monitores cardíacos e cerebrais. Ao todo a sessão leva cerca de 15 minutos, da hora em que os pacientes se deitam na mesa até a hora em que começam a acordar.
Os médicos também ajustam a dosagem elétrica de acordo com cada paciente. Eles enviam pequenas doses iniciais vão aumentando a corrente até o ponto exato de produzir a convulsão. Há uma enorme variação do limiar de convulsão entre os pacientes porque há grandes diferenças na geometria do crânio, na espessura relativa dos espaços dentro do crânio e na excitabilidade das células nervosas subjacentes.
O ponto característico de convulsão varia entre 30 e 100 miliampères segundos; a geração anterior de aparelhos enviava pelo menos duas vezes mais carga.
A forma pela qual a corrente é transmitida aos pacientes também mudou. Os médicos agora preferem reproduzir a atividade rítmica oscilante das células nervosas, enviando pequenas vibrações de eletricidade, entre 80 e 180 em um segundo. O método tradicional de transmissão contínua produzia uma convulsão muito intensa por um tempo muito longo.
Os psiquiatras ainda estão discutindo qual a melhor posição dos eletrodos para que estes produzam o máximo benefício com o mínimo de efeitos colaterais. Alguns são a favor de se colocar um eletrodo na têmpora do lado não dominante do cérebro e o outro no alto da cabeça. Isso produz uma convulsão bilateral, mas ela será menos intensa do lado dominante do cérebro sendo, consequentemente, menos provável que afete a memória. Outros acreditam que o método tradicional de se colocar eletrodos em ambas as têmporas é mais eficaz.
Um estudo publicado no na revista médica "New England Journal of Medicine" em março de 1993 revelou que a posição dos eletrodos e a quantidade de eletricidade enviada influencia intensamente o resultado clínico: uma corrente curta em um lado do cérebro tem pouco efeito na redução da depressão enquanto que a corrente aplicada bilateralmente em qualquer dosagem é eficaz mas resulta em maior perda de memória.
Acompanhando os avanços clínicos, os pesquisadores ainda tentam descobrir porque a ECT funciona. Uma teoria –para a qual há alguma evidência– é a de que a ECT altera a quantidade de sinais dos neurotransmissores que passam entre as células nervosas, embora não possam precisar quais neurotransmissores são afetados.
Os cientistas acham que a química cerebral é "zerada"após uma convulsão de ECT, regularizando a produção anormal dos sinais que influenciam o comportamento afetivo do paciente.
Enquanto tais refinamentos clínicos e pesquisas laboratoriais aperfeiçoavam a prática da ECT, a ineficácia e os efeitos colaterais de alguns medicamentos para o tratamento da depressão tornaram-se flagrantes. Alguns pacientes tratados com a droga torazina, por exemplo, apresentaram discinesia tardia – contrações da boca e da língua– devido a danos cerebrais.
Experiências
Em 1978, a Associação Psiquiátrica Norte-Americana publicou o relatório de sua força-tarefa sobre a ECT, que apoiava firmemente a técnica para o tratamento da depressão.
Nesse mesmo ano, seis equipes de pesquisadores britânicos começaram a conduzir uma série memorável de experimentos para comparar dois grupos de pacientes: um grupo recebeu ECT e o outro acreditava ter recebido ECT mas na verdade não recebeu o choque. Todos os pacientes realmente tratados com ECT apresentaram melhora clínica. Em 1985, os Institutos Nacionais de Saúde, em Maryland, concluiu que o tratamento havia sido "demonstrativamente eficaz para uma pequena variedade de distúrbios psiquiátricos graves, incluindo a depressão, mania e esquizofrenia".
A ECT está certamente desfrutando de uma nova aceitação no EUA, apoiada por testemunhos de artistas como Dick Cavett –um dos mais eruditos apresentadores da televisão norte-americana– afirmando que a ECT salvou sua vida. Ao mesmo tempo, o tratamento ainda é objeto de muita controvérsia.
Críticas
Lee Coleman, um psiquiatra de Berkeley, na California, descreve a ECT como uma "causadora do tipo de lesão cerebral grave que se esperaria quando se põe eletricidade no cérebro. É igual ao que acontece quando se leva uma pancada na cabeça –confusão, perda de memória, inabilidade de reter novas informações".
Coleman sustenta que o efeito colateral da ECT é o próprio tratamento: "Os pacientes não conseguem se lembrar do que os estava perturbando. O interessante é que quando se aplica um tratamento menos intenso, como quando se coloca um eletrodo unilateral, a perda de memória é menor. Isso é exatamente o que se suspeitaria se o tratamento funcionasse através de lesão cerebral".
Psiquiatras, pacientes e suas famílias que permitem o uso da ECT estão "pulando fora", diz ele. "É uma onda passageira". Todos estão evitando a verdadeira razão pela qual as pessoas estão deprimidas, que é porque a vida não está indo lá muito bem".

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