São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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Política de Clinton desperta ira da Ásia

ALVIN E HEIDI TOFFLER

Quando se toma o pulso da Ásia hoje, de Nova Déli a Tóquio, percebe-se uma maré crescente de ira, desapontamento e hostilidade em relação a uma administração norte-americana que, aos olhos asiáticos, está desajeitadamente engajada em destruir laços americano-asiáticos que levaram meio século para serem tecidos.
Será que o presidente dos EUA, Bill Clinton, realmente quer brigar com a Ásia inteira? Se a resposta for não, ele fará bem em desviar a atenção das preocupações e escândalos internos e prestar atenção ao que seus diplomatas e negociadores fazem na maior região econômica do mundo –e a que está crescendo mais depressa.
O futuro de toda a economia mundial vai depender de a região da Ásia-Pacífico se transformar numa imensa área de livre comércio, englobando tanto os americanos e os asiáticos –ou de rachar, dividindo-se em blocos protecionistas em guerra um com o outro.
Longe de estar criando um mercado aberto, pacífico e estável em toda a região, Washington está gerando uma reação negativa entre os asiáticos, que se poderia sintetizar como um sentimento de "Ásia para os asiáticos". Isso poderia vir a dividir o Pacífico em duas partes, erguer muros protecionistas e transformar o Pacífico num mar de violência outra vez.
O presidente Clinton envia Mickey Kantor, seu principal guerreiro comercial, para falar grosso em Tóquio e o secretário de Estado Warren Christopher para esbravejar em Pequim. Funcionários menos importantes se espalham por outras partes da região, carregando consigo avisos e ameaças.
Embora os EUA tenham queixas comerciais legítimas a fazer junto a alguns países asiáticos, e alguns destes evidentemente não satisfaçam os padrões americanos de democracia, direitos humanos ou poluição ambiental, nada disso irá melhorar com a pura e simples expressão de ofensivas críticas à Ásia. E não faz sentido antagonizar todos ao mesmo tempo.
Em lugar de, com inteligência, fazer um adversário voltar-se contra o outro, a inexperiente equipe de Clinton começou ingenuamente a atacar as três maiores economias asiáticas –Japão, China e Índia– ao mesmo tempo. Pior ainda, ela está centrando sua atenção em problemas pequenos e ignorando as grandes oportunidades que a Ásia apresenta.
Um exemplo disso é a pressão norte-americana para ingressar no mercado japonês da construção.
Até pouco tempo atrás as gigantescas construtoras japonesas mantinham um relacionamento amistoso e corrupto com o governista Partido Liberal Democrático, para o qual canalizavam enormes contribuições de campanha em troca de contratos –uma prática que não é exatamente desconhecida nos EUA. O que o negociador comercial Kantor quer, entre outras coisas, é que as empresas americanas consigam melhores oportunidades na construção de aeroportos e outros projetos no Japão.
Não há nada de errado nisso. Mas enquanto essa disputa sobre alguns insignificantes bilhões em negócios se desenrola em Tóquio e Washington, várias economias asiáticas em rápido crescimento imploram por mais infra-estrutura. Desde o delta do rio Mekong, no Vietnã, até a região do rio Tumen, no norte da Coréia, passando pela província chinesa de Yunnan, projetos enormes deverão ser encomendados no futuro próximo.
A Tailândia enfrenta escassez de água. A China não consegue transportar seu carvão, do norte para o sul de seu território, em seu sistema ferroviário obsoleto. A Índia quer eletricidade. O Fórum Econômico Ásia–Pacífico estima que a Ásia representa um mercado de US$ 1.000.000.000.000 (isto é um trilhão, não um bilhão!) em obras infra-estruturais. Um instituto de pesquisas de Cingapura acredita que, nos próximos 15 anos, podem ser necessárias obras no valor de até US$ 3 trilhões.
Se joint-ventures nipo-americanas abocanhassem mesmo uma minúscula parte desse imenso mercado, poderiam aliviar radicalmente o déficit norte-americano. Imagine, por exemplo, uma coligação de forças entre a GE e a Kajima ou a Marubeni e a Bechtel.
Parcerias desse tipo já foram criadas entre empresas arquitetônicas norte-americanas e japonesas, como a HOK Sports Facilities Group, de Kansas City, e a Nikken Sekkei Ltd., embora até agora só estejam operando no Japão.
Talvez já existam algumas no campo da construção. Mas se Kantor e companhia parassem de reagir impensadamente a alguns poucos lobbies de interesses especiais em Washington, como plantadores de arroz, firmas têxteis e fabricantes de produtos de madeira, eles poderiam conseguir esboçar soluções estratégicas que reduzam, em lugar de ampliar, as brechas econômicas e políticas na região.
Querem reduzir o déficit comercial? Mudem a lei que restringe a venda de petróleo do Alasca à Ásia –proibição que não foi escrita para defender os interesses da segurança nacional norte-americana, como foi divulgado, mas para proteger um pequeno grupo de transportadoras marítimas costeiras nos EUA.
O então primeiro-ministro japonês Hosokawa divulgou outra proposta contendo modestas concessões aos EUA. Kantor a rejeitou imediata e publicamente. Isso se segue à insistência de Warren Christopher, ao visitar Pequim, em dar outro ultimato ameaçando pôr fim ao tratamento de nação mais favorecida, dado à China, a não ser que a China satisfaça uma lista de exigências na área dos direitos humanos.
Um covarde quando se tratou da Bósnia e do Haiti (populações somadas de menos de 11 milhões), Christopher repentinamente se transforma em Rambo quando vai à China (população mais de 1,1 bilhão). O resultado: a China responde também falando grosso, prende mais alguns dissidentes só para deixar claro quem manda ali, e Christopher se prepara para recuar.
Enquanto isso, um arrepio percorre o resto da Ásia. Os asiáticos vêem a conversa sobre direitos humanos como o que realmente é, em parte: uma cortina de fumaça para esconder medidas que beneficiam estreitos lobbies protecionistas nos EUA. (Ouve-se muito pouco sobre a necessidade de direitos humanos em Burundi, por exemplo, onde os EUA não têm interesses comerciais significativos.)
A equipe de Clinton também parece desconhecer os efeitos colaterais de suas ações. Assim, manchetes na imprensa australiana descrevem o aviso lançado por Christopher à China como ameaça à economia australiana. "Amplia-se nosso racha com Washington", proclama uma manchete de primeira página em Sydney. O artigo explica como ações norte-americanas prejudicariam o país situado mais ao sul.
E a Austrália –que não é exatamente um típico Estado autoritário– também não concorda que questões relativas aos direitos humanos devam ser atreladas à política comercial, como a equipe Clinton vem fazendo.
Isto tudo, sem falar na Índia. Clinton levou um ano inteiro para dar-se ao trabalho de nomear um embaixador para Nova Déli –mais uma ofensa gratuita à dignidade asiática– e depois recusou-se publicamente a enviar a pessoa por quem os indianos haviam expressado sua preferência.
Enquanto a Índia liberaliza sua economia e investidores americanos afluem ao país que tem a segunda maior população do mundo, o próprio Clinton e um funcionários indicado para o Departamento de Estado enfurecem a Índia, fazendo referências descuidadas, ou provocadoras às reivindicações separatistas em Caxemira.
Aos ouvidos indianos, os EUA pareciam estar questionando "a unidade e integridade territorial da Índia". A opinião pública indiana se enfureceu a tal ponto que, de acordo com um industrial indiano citado recentemente pelo "The Asian Wall Street Journal", "está chegando ao ponto que uma joint-venture na Índia que hasteasse a bandeira americana seria alvo de um atentado a bomba".
Na semana passada, em Nova Déli, o primeiro-ministro malasiano, Mahatir Mohamad, arrasou as propostas americanas de estabelecer um "salário mínimo mundial", qualificando-a de tentativa protecionista de desacelerar o investimento em países em desenvolvimento, em vez de tentativa de elevar os padrões de vida dos trabalhadores.
Em toda a Ásia, a proposta é vista como parte de um pacote de critérios "sociais" e ambientais que os EUA querem introduzir no Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt) como meio de elevar os custos de produção nos países mais pobres, reduzindo sua vantagem competitiva, e não como tentativa de melhorar os padrões de vida e a qualidade ecológica.
Esta lista é apenas o início de um catálogo dos erros da administração Clinton, que suscitaram a indignação de quase todos os países da Ásia ao mesmo tempo.
O que exatamente está acontecendo em Washington? É o que os asiáticos querem saber. Quem está administrando a loja? Clinton conduziu sua campanha presidencial, queixando-se de que seu predecessor dava atenção demais à política externa. Ao que parece, nenhum de seus assessores lhe disse que deixar de prestar atenção à política externa poderia colocar em perigo as relações dos EUA com metade da população do mundo.
Um bilhão de pessoas na Ásia podem ser resgatadas da pobreza se o dinamismo econômico da região puder ser mantido. Esse processo também poderia energizar a economia americana. Mas o dinamismo asiático se fundamenta numa premissa de estabilidade política e militar, à qual os falcões comerciais de Clinton não parecem conferir a devida importância. Ameaçar essa estabilidade no interesse de alguns poucos interesses especiais em Washington constitui uma irresponsabilidade.
Uma administração taticamente ingênua e estrategicamente incompetente em Washington parece estar quase decidida a romper suas alianças na zona econômica e estratégica mais populosa e mais importante do mundo: a região da Ásia-Pacífico.

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