São Paulo, sexta-feira, 29 de abril de 1994
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Novos humoristas abolem riso espontâneo

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Ás vezes tenho saudade do tempo em que a televisão brasileira era mais subdesenvolvida, mais grossa, mais cretina.
Os velhos programas humorísticos, por exemplo. Eram péssimos, mas sua estupidez tinha algo de hipnótico. Sempre preferi as vulgaridades sem graça nenhuma de "A Praça é Nossa" às pretensas inovações e ao humor negro do hoje também histórico programa da Globo, "TV Pirata".
Não é que a gente dê mais risadas com um tipo de programa ou com outro. O que me fascinava, nos números de Golias por exemplo, é que os coadjuvantes não conseguiam controlar o próprio riso. A comédia no ar podia ser de péssima qualidade –Costinha sempre foi horrível– mas a um dado momento os atores sempre se esqueciam do texto e se espremiam de rir.
Até há pouco tempo, havia um show de Bronco –Ronald Golias– na televisão. Era uma pequena peça, um velho teleteatro, lembrando os dias heróicos da "Família Trapo". Humor fraquíssimo, claro. Mas os próprios atores não se aguentavam de tanto riso. Escondiam a cara.
Essas coisas estão acabando. Faustão, que era subdesenvolvimento puro no começo de sua carreira, prejudicou-se com seu programa na Globo, onde a produção funciona. Bolinha não renovou o seu contrato! E a televisão brasileira nunca mais será a mesma sem Bolinha!
Sobram algumas relíquias: Raul Gil; essa revelação impressionante que é Athayde Patreze!; os extraordinários pastores do fim da noite. Silvio Santos é um caso à parte já que manifesta um profissionalismo bem pouco brasileiro; quase global, se ele não estivesse à frente de uma emissora que concorre com a Globo.
Sobra também esse melancólico museu do humorismo que é a "Escolinha do Professor Raimundo". Quantos talentos, como Walter d'Ávila, a Catifunda, sobrevivem ali como se se tratasse de uma reserva ecológica...
Faço essas considerações depois de assistir à estréia de "Programa de Auditório", na "Terça Nobre" da Globo, com Luiz Fernando Guimarães no papel do detetive Ed Mort.
Luiz Fernando Guimarães é um grande ator cômico. O roteiro de "Programa de Auditório", sem ser especialmente engraçado, era divertido.
Com atrações como "Casseta e Planeta", "Programa Legal" ou agora esse "Programa de Auditório", a Rede Globo se coloca diante do difícil problema: "como ser inteligente"? Ou melhor, como aparentar inteligência?
A despeito dos extraordinários talentos de Regina Casé, de Guilherme Karam, de Débora Bloch, o resultado deixava a desejar. Não se fala do quase-fascismo do pessoal do "Casseta e Planeta": aquilo é monstruoso, e baseia-se num mecanismo psicológico fácil de identificar.
Trata-se do esforço de ser "irreverente", chocante, "radical", num meio de comunicação de massas dominado pelo conservadorismo mais odioso e babaca. Face ao espantoso direitismo da Globo, a radicalidade humorística de "Casseta e Planeta" só poderia investir no racismo, no preconceito, na violência, na fascistada.
O respeito ao "politicamente correto" é sem dúvida o fim de qualquer humorismo. Sem caricatura e preconceito, dificilmente alguma coisa fica engraçada. Vide "O Riso", do francês Henri Bergson, ensaio filosófico de uma clareza, de um poder de explicação incomparáveis.
Mas, uma coisa é usar o preconceito para fazer graça. Piadas sobre portugueses, gaúchos, negros, médicos, judeus. Outra é fazer da graça um veículo para o preconceito –para ser puramente chocante; mais chocante do que engraçado.
"Casseta e Paneta", assim como a "TV Pirata", levavam a sério demais a obrigação de um radicalismo humorístico imposta pela produção global.
Antes desse tipo de programa, o nível de qualidade, o "padrão de qualidade global" impusera ao público a rotina piastificada dos quadros semanais de Jô Soares e Chico Anysio. Jô Soares provou ser muito mais inteligente no seu programa de entrevistas do que nas repetições tediosas de seus personagens na Globo. Chico Anysio hoje não é mais nada. Um humorista casado com Zélia Cardoso de Mello deve esgotar todo o seu senso de humor na vida doméstica.
Mas enfim a Globo percebeu que não precisava ser tão burra quanto o "padrão de qualidade" de suas novelas e de seu jornalismo estava a exigir. Tentou renovar-se com o "Programa Legal", por exemplo. Contratou também Lilian Witte Fibe.
Renova-se, com certo brilho, com o "Programa de Auditório" de Luiz Fernando Guimarães. Mas há que examinar com mais detalhe esta última maquiagem.
Alegrei-me ao ver que, em determinadas situações do "Programa de Auditório", os atores pareciam rir espontaneamente, como se estivéssemos num daqueles velhos programas humorísticos citados acima.
O problema é que não há mais diferença entre o "espontâneo" e o "programado" nesta produção da Rede Globo. Tudo é tão profissional, que mesmo o riso involuntário faz parte do script. Se é que se tratava de riso involuntário.
Outra "modernidade inteligente" do programa de Luiz Fernando Guimarães é o recurso, hoje em dia banalizado, à metalinguagem.
Por algum preconceito idiota, julga-se que é mais inteligente mostrar, por exemplo, em vez simplesmente de um filme, o filme que mostra como um filme é feito. Em vez de uma peça, o ensaio de uma peça e as dúvidas do autor a respeito da peça. Filmes-dentro-de-filmes, peças-dentro-de-peças: mania de matalinguagem passando por inteligência, vanguardismo e desilusão crítica.
O clichê é imenso e dos mais vagabundos. Claro que a Globo iria tentar uma exibição de "inteligência" recorrendo a isso.
O "Programa de Auditório" mostra assim os cameramen em cena, procura confundir a "realidade" com a "ficção". Mesmo as risadas involuntárias (ou não) dos atores se inscrevem nesse jogo fácil da metalinguagem.
O mais sintomático desse programa humorístico é o uso que faz da população carioca. Muitas cenas externas acontecem. O herói vai a uma feira, por exemplo. Cotracena, então, com pessoas comuns. Curiosos se aglomeram diante das câmeras da Globo. Luiz Fernando Guimarães entra num ônibus real. O "povão" está ali, e reage com timidez ou risos. Representantes "autênticos" da "camada popular" conversam com o debochado detetive do programa.
Em princípio seria possível dizer que "Programa de Auditório" se impregna de realidade, faz "o povo" aparecer na TV. Ocorre o contrário. As pessoas comuns, ao aparecerem neste "Programa de Auditório", é que se rendem ao poder da televisão, idiotizam-se frente às câmeras, tornam-se objeto de deboche e de desprezo.
No fundo, é a Rede Globo que se enaltece nessa pretensa modernidade metalinguística e hipercrítica. O "povão" espectador de seus programas, aparece num programa, tão estúpido como sempre. É manipulado ao vivo, e ri do que acontece.
A Globo sempre apostou, com sucesso, na burrice dos brasileiros. Com este "Programa de Auditório", joga no descaramento total, como se ficasse "mais inteligente ao gozar dos próprios espectadores. Natural que o cinismo engraçado de Luiz Fernando Guimarães em seu neocafajestismo em oposição ao velho cafajeste machista que é Jece Valadão –ganhe com isto.
Vivemos um período de cinismo crítico –usei esta expressão ao elogiar "Capitalismo Selvagem", filme de André Klotzel–, e o estilo de atuar desenvolvido por Luiz Fernando Guimarães, Regina Casé, Guilherme Karam, ou mesmo o Derico da orquestra do "Jô Soares Onze e Meia", cabem dentro desse conceito. O problema é quando o cinismo crítico se instrumentaliza sob a Rede Globo: torna-se muito cínico, mas nada crítico.

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