São Paulo, quarta-feira, 4 de maio de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O Rio Grande do Sul e a interação latino-americana

RICARDO ANTÔNIO SILVA SEITENFUS

Erramos: 06/05/94

Por erro de digitação, o artigo foi publicado com o título incorreto. O título certo é " O Rio Grande do Sul e a integração latini-americana".
O Rio Grande do Sul e a interação latino-americana
Devemos ser criterios os com o que o governo federal nos oferece
No ano de 1960, Leonel Brizola, à época governador do Rio Grande do Sul, envia dramática mensagem ao presidente Juscelino Kubitschek, denunciando que o Brasil está prestes a "firmar acordo internacional que pode trazer efeitos os mais danosos e injustos para labor honesto e fecundo do povo riograndense, sem permitir nossa opinião sobre assunto que interfere com nossos mais altos e sagrados interesses".
O telegrama, datado de 6 de fevereiro, refere-se à criação da Associação Latino-americana de Livre Comércio (ALALC), promovida pelo então ministro das Relações Exteriores, Horácio Lafer. Brizola reivindica que o Rio Grande do Sul "possa examinar e se fazer ouvir durante a elaboração do Tratado de Montevidéu", designando, para tanto, Manoel Luzardo de Almeida, economista especializado no setor primário.
A imprensa brasileira, mordaz ao noticiar o episódio, descreveu o governador gaúcho como "ridículo, fanfarrão e administrador irresponsável do Rio Grande do Sul" ("Correio da Manhã", 10/02/1960). Diante das declarações oriundas do Itamaraty, que informa ter enviado ao Rio Grande do Sul todos os documentos atinentes ao acrodo, predomina nos periódicos uma interpretação superficial: a de que, antes de fazer ameaças, Brizola deveria pôr em ordem sua administração.
Efetivamente, o governador afirma estar "tomando conhecimento, através da imprensa, que o governo brasileiro prepara-se para assinar acordo para construção de Mercado Comum sul-americano". No entanto, a ALALC visava unicamente fomentar o comércio intra-regional, lançando de forma conjunta as bases da industrialização, para torná-la mais eficiente. Estava totalmente excluída de sua pauta a diminuição tarifária dos produtos oriundos da agricultura e da pecuária.
A cena protagonizada por Brizola repetir-se-á 28 anos mais tarde, em abril de 1988, novamente através do governo do Rio Grande do Sul, agora exercido por Pedro Simon.
Em Brasília, quando da assinatura de mais uma rodada de acordos entre Brasil e Argentina, ponto fundamental da política de aproximação instaurada pelos presidentes Sarney e Afonsín, Simon declara que tomou conhecimento, através da imprensa, do teor de um dos documentos: o Protocolo 22, semente do Mercado Comum do Sul (Mercosul), criado pelo Tratado de Assunção, em 1991.
Com o recuo do tempo, torna-se evidente que, assim como para a ALALC combatida por Brizola tais questões não estavam em jogo, no caso do Protocolo 22 –que mereceu feroz reação de Simon– não houve invasão dos produtos argentinos: ao contrário a economia primária gaúcha demonstrou sua competitividade no mercado argentino.
O Rio Grande do Sul alçou-se ao segundo lugar das exportações brasileiras (crescimento de 12,10% em 1992 para 13,44% em 1993), menor apenas que a de São Paulo, inclusive com a exportação de produtos primários. A Secretaria Estadual de Desenvolvimento Econômico e Social divulgou, em fevereiro de 1994, levantamento pelo qual conclui que as exportações gaúchas para os países membros do Mercosul cresceram 68,52% em 1993.
Na verdade, há dois aspectos realmente importantes na atitude dos dois governadores. Em primeiro lugar, a identificação dos interesses públicos do Rio Grande do Sul com as idéias de alguns segmentos arcaicos do setor da produção primária, pelos quais arriscam-se até mesmo a combater algo que desconhecem. Apesar do profundo processo de urbanização e industrialização pelo qual passou o Rio Grande do Sul, até os dias de hoje, quando há no horizonte qualquer mudança, positiva ou negativa, que possa tangenciar tais interesses, de imediato o poder político mobiliza-se.
Por outro lado, os políticos gaúchos tradicionais estão impregnados de uma visão regionalista das relações entre o Brasil e a América Latina, cujo "calcanhar-de-aquiles" seria precisamente o relacionamento do Rio Grande do Sul com a Bacia do Prata.
O território gaúcho detém toda a fronteira brasileira com o Uruguai e grande parte dos limites com a Argentina. Do ponto de vista militar e estratégico, aparenta ser um escudo contra o Sul. De fato, muito da história do Rio Grande fez-se com ou contra os países platinos.
O perfil da produção econômica, do acesso aos fatores de produção, especialmente a terra, e a própria cultura (iclusive política, pois Getúlio Vargas costumava dizer que se sentia mais próximo de Buenos Aires do que do Rio de Janeiro), moldam os gaúchos para que não sejam indiferentes em relação aos seus vizinhos. Assim, todas as iniciativas do governo federal referentes a questões latino-americanas, serão muito mais sentidas no sul do país do que nos demais Estados da União.
Note-se que, assim como Brizola, Simon fez a política do alarde, apresentando os temores de alguns gaúchos como interesses sagrados de todo o Rio Grande do Sul e, o que é mais grave, prescindindo de um sério estudo que avaliasse as consequências do acordo para a economia gaúcha.
Ironicamente, alguns meses depois do episódio aqui narrado, tendo observado o processo integracionista em desenvolvimento, Simon consagrou-se como artífice da integração, sendo ovacionado pela imprensa e pelos setores classistas do Estado, eis que os protocolos –outrora combatidos por ele, pela imprensa e os mesmos setores– foram assinados durante a sua gestão.
A própria participação dos Estados membros em questões de política externa foi assegurada pelo Protocolo 23, elaborado pela Secretaria de Assuntos Internacionais do Rio Grande do Sul e assinado em 1988.
Pela primeira vez criou-se um canal, juridicamente reconhecido pelo governo federal, de participação do Estado nas questões que envolvem nossas relações com a Argentina. Diga-se de passagem, é chegado o momento de fazer o mesmo com relação ao Uruguai.
O exemplo de Simon serve para introduzir tema bem mais amplo. No Rio Grande do Sul, passamos do repúdio à abertura do mercado ao ufanismo integracionista. Há, atualmente, adesão imediata e inquestionável ao Mercosul, considerado uma questão gaúcha e não um projeto nacional, sobretudo pelos setores que dantes contestavam o Protocolo 22.
A euforia decorre de uma imprecisão: não se percebe que os ganhos são conjunturais e podem ser alterados, por exemplo, com uma mudança da política econômica argentina.
A tal ponto, e tão superficialmente, o senso comum assimilou o princípio da integração, que a opinião pública condena, de pronto, qualquer crítica formulada à condução das negociações do Mercosul, como se os seus emissores fossem adversários não da forma de conduzi-lo, mas do próprio processo.
Quando Lula visitou a fronteira gaúcha com sua caravana e nela demonstrou sua preocupação com o encaminhamento dado pelo governo federal ao Mercosul, registraram-se reações implacáveis, inclusive afirmações de que no governo petista o sonho de um mercado comum estaria acabado.
Ora, Lula apenas expressou conhecimento sobre o tema, o que é inédito entre os candidatos à Presidência da República. Não se opõe, apenas reflete: propôs a revisão de prazos, o que traria maturidade e precisão ao processo. Questionou os seus atores, eis que o Itamaraty centraliza o encaminhamento do Mercosul, dele excluindo precisamente os consumidores, os pequenos produtores rurais e os representantes da fronteira, entre muitos outros interessados. Seguramente, a pressa e a irreflexão, tantas vezes presentes em nossa história, é que são os coveiros da integração. Desta forma, o que há de comum entre a anterior rejeição e o ufanismo do presente é de fato a precipitação.
Evidente que o moderno Rio Grande do Sul não pode prescindir de um projeto amplo de integração latino-americana, pois somente assim o extremo Sul do Brasil terá condições de tornar-se um dos pólos do novo sistema sul-americano que se desenha. Contudo, um projeto mal concebido ou executado inadequadamente pode causar, e já tem causado, prejuízos inestimáveis.
Favoráveis ao pressuposto da integração, devemos ser criteriosos, não descartando e nem acatando, de pronto, tudo o que nos oferece o governo federal. Os exemplos de Simon e Brizola revelam que a precipitação e a busca de resultados políticos imediatos constróem o pior caminho para o desenvolvimento e são vícios que o curso da história não tarda a desnudar.

Texto Anterior: Momento oportuno; Função da âncora; Custo do real; Aposta na alta; Vereda aplainada; Segunda etapa; Conta nova; Reforço de caixa; Na véspera; Capítulo financeiro; Razão do vermelho; Ganho duplo; Outro lado; Baixa prevista; Chance limitada; Com exclusividade; Óleo rentável; Lobby tópico
Próximo Texto: Só os juros da poupança devem ser declarados
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.