São Paulo, quarta-feira, 4 de maio de 1994
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Macunaíma X Senna

A trágica morte de Ayrton Senna sem sombra de dúvida comoveu o Brasil. Mesmo aqueles que não acompanham as corridas ficaram chocados com as imagens do piloto se espatifando contra um muro a 290 km/h. E mais, era um jovem bem-sucedido, dedicado à sua profissão e que poderia ir ainda mais longe. O último domingo foi sem dúvida um dia triste para o país.
Não se pode deixar de constatar, porém, que a decretação de ponto facultativo –leia-se feriado– para as repartições públicas municipais e estaduais hoje e para as federais do Estado de São Paulo hoje e amanhã é um verdadeiro despropósito. É óbvio que a dramática morte do piloto não é razão para que os os hospitais públicos funcionem apenas em regime de emergência, as crianças matriculadas na rede oficial não tenham aulas e os funcionários públicos não trabalhem.
É igualmente claro que os políticos em questão, ou seja, o prefeito Paulo Maluf, o governador Luiz Antonio Fleury Filho e o presidente Itamar Franco, estão tentando tirar proveito político do enorme prestígio do piloto e da comoção que sua prematura morte provocou.
Essa comoção tem, aliás, suas razões. A profunda crise que o país atravessa já há tanto tende a provocar desânimo na população. Desemprego, violência, miséria: no Brasil é difícil sonhar. Mas Senna era justamente o oposto de tudo isso. Para o piloto, através de sua pertinácia e capacidade de trabalho, os sonhos se materializavam e o sucesso, a fama, a glória, tudo chegava tão rápido quanto as máquinas que dirigia. Senna era, enfim, a expressão real dos desejos e anseios de toda uma população privada às vezes até do que há de mais básico. E por isso virou herói, um dos poucos motivos de orgulho num país que bate recordes de desigualdade, inflação e analfabetismo.
A decretação do ponto facultativo, infelizmente, vem demonstrar, ao contrário do que escreveu ontem nesta Folha o ministro Rubens Ricupero, que o Brasil –ou pelo menos alguns de seus políticos– tem muito mais de Macunaíma do que de Ayrton Senna.

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