São Paulo, quarta-feira, 4 de maio de 1994
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A morte anunciada

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Em geral, quando se fala em capitalismo selvagem pensa-se obrigatoriamente na luta de classes, o capital oprimindo o trabalho, manipulando-o selvagemente. Esquece-se de pensar no capitalismo em face do próprio capitalismo, a guerra da concorrência profissional, o vale-tudo do lucro. A morte de Ayrton Senna é um emblema dessa selvageria.
Na véspera, ao saber da morte do colega austríaco, Senna deu uma pequena entrevista ainda na pista de Ímola. Estava tenso, pior do que isso: o rosto estava descomposto –e não era de medo. Era de revolta, de cólera contra a máquina, não exatamente a sua Williams, mas contra a engrenagem da Fórmula 1. São milhões de dólares em jogo, milhões que precisam gerar outros milhões, haja o que houver, é a lei da selva.
Senna não queria correr. Sonhou em pilotar a Williams, mas deu azar. O carro não era o mesmo, os tecnocratas haviam decidido criar maiores emoções nas pistas, exigir mais dos pilotos. Cortaram fundo no ítem da segurança –e Senna denunciou isso em sua última entrevista, logo após a morte do colega e na véspera da própria morte.
No dia da corrida, antes de colocar o capacete que não o protegeu, ele estava tenso no boxe. Alisou o carro –o seu esquife– e olhou fundamente o cockpit onde, uns minutos a mais, seria colhido pela morte. Não parecia ter medo, embora fosse natural o medo. Havia resignação, ovelha a caminho da goela do lobo, havia fatalidade.
Ele ainda tinha tempo: bastava despir o macacão, mandar dizer que não iria ao matadouro. Não se sentia em condições psicológicas depois dos acidentes da véspera e da antevéspera. Mas era um profissional, havia o regulamento, os contratos, a desistência seria deixar na mão centenas de outros profissionais, desde o apertador de parafuso até o segurança do boxe, também ovelhas, cúmplices no seu sacrifício.
Pouco depois, Senna já estava no cockpit. A câmera registrou sua testa franzida, o olhar calmo, resignado mas infeliz. A boca parecia querer falar alguma coisa, mas um herói só é heroi quando tem compromisso com o absurdo. Era preciso correr, era preciso vencer, era preciso morrer.

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