São Paulo, quarta-feira, 4 de maio de 1994
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Senna e o Brasil

CLÓVIS ROSSI

SÃO PAULO – Há explicações universais para a comoção provocada pela morte de Ayrton Senna. Sempre que morre um jovem, o impacto é muito maior do que o causado pela morte de uma pessoa mais velha, por motivos óbvios.
Se esse jovem é um supercampeão, com prestígio internacional, a comoção é exponencial, também por motivos óbvios.
Para os brasileiros, a hipercomoção também tem uma explicação natural. A sabedoria convencional diz que é mais importante, para uma dada pessoa, um morto na esquina de sua casa do que cem mortos na Bósnia ou em Ruanda.
Mas há também um aspecto menos lógico, menos natural, a ser analisado. Um dos incontáveis "populares" entrevistados pela TV desde domingo disse mais ou menos o seguinte: "Era o único brasileiro que estava dando certo".
Talvez seja um exagero. Mas ajuda a disseminar a sensação de que Deus, antes tão brasileiro, não só rasgou o passaporte verde-e-amarelo, como se dedica, agora, a enviar desgraça sobre desgraça na direção do país "abençoado por Deus e bonito por natureza", da canção de Jorge Benjor.
Senna, no fundo, era um sedativo para a alma do país, papel antes desempenhado pela seleção brasileira de futebol. Bastava o esforço nenhum de sentar-se, a cada domingo de Fórmula 1, diante da TV e pegar carona no carro de Senna para conduzir a bandeira verde-e-amarela ao lugar que ela de fato jamais ocupou, o primeiro.
As cartas de alguns leitores, na edição de ontem, e até o artigo do ministro Rubens Ricupero traduzem essa idéia muito claramente. "Herói que, dentro de sua máquina, conduzia a nação à vitória", escreve, por exemplo, Ronoel Pedrosa de Alvarenga.
"O verdadeiro Brasil tem mesmo cara é de Ayrton Senna", prefere o ministro Ricupero.
Seria bom se fosse verdade. Mas não é. Nem a nação foi conduzida à vitória pelo simples fato de Senna ser um vencedor, nem o Brasil tem a cara do piloto morto. Por isso, chora. Pela morte em si, terrível, mas também por mais uma dose de morfina ter sido retirada das veias do doente Brasil.

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