São Paulo, quarta-feira, 4 de maio de 1994 |
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Saudade de Ayrton
MAURO SALLES Erramos: 05/05/94Neste artigo, por um erro contido no original, saiu "dos humildes e dos mais obstinados", em vez de "dos humildes e dos mais afortunados". Saudade de Ayrton Ele era o primeiro, na caminhada e na luta esportiva, na difícil carreira de piloto. Estava em primeiro, na pista, quando partiu. Fora o primeiro na véspera. Chegou em primeiro na primeira volta. Lá se ia ele à frente de todos, disposto a lembrar naquela prova quem era o verdadeiro líder, o campeão. A 300 km por hora, seu recado era simples e direto: meu lugar é na frente. E foi assim, até aquela curva, no acidente que o levou de encontro ao muro. Depois, o corpo no asfalto, o macacão aberto, o sangue espalhado, a desesperada tentativa dos médicos no hospital. E a morte, inexorável, a interromper uma caminhada que prometia ainda maiores sucessos. Foi um choque nacional e internacional. De colegas, de jornalistas, de amigos, de outros adversários e, principalmente, do povo deste Brasil, dos humildes e dos mais obstinados, uma só voz de perplexidade e tristeza, consagrando uma unanimidade que já existia enquanto ele viveu. Estava morto o maior e o melhor de todos os pilotos de corrida. Do Brasil. Do mundo. Há mais de 40 anos convivo com a Fórmula 1. Como torcedor ou redator automobilístico tive o privilégio de ver nas pistas os grandes mitos do passado: Farina, Ascari, Villoresi, Von Stuck, Fangio, Jim Clark, Stirling Moss, Jackie Stewart. Nenhum era melhor que Senna. No Brasil, convivi com Chico Landi, Henrique Cassini, Catarino Andreata, ídolos do passado. E na antiga Willys acompanhei o desabrochar de pilotos como Bird Clemente e Luiz Pereira Bueno, o Wilsinho Fittipaldi, o José Carlos Pace e o Emerson Fittipaldi. Emerson, grande campeão, abriu espaço para toda uma geração de grandes estrelas nacionais e continua vencendo e dando lições na Fórmula Indy. O Nelson Piquet, a quem tanto admiro, alegrou os brasileiros nas suas muitas vitórias e na forma como se tornou campeão. Um e outro estão na história do automobilismo mundial. São ídolos, mas não são mitos. No entanto, Ayrton já era um mito, vivo. E não sem razão. Dentro e fora das pistas, era intolerante com a mediocridade. Buscava ultrapassar adversários e, no percurso, deixava o recado de quem está sempre à procura do ótimo, dando o máximo de sua dedicação e de sua competência. De outro lado, não se deixava dominar por vaidades ou orgulhos estéreis. Sabia que era vulnerável e, por isso, admitia publicamente seus erros e suas falhas, sem aceitar a posição de semideus das pistas que jornalistas entusiasmados e um público apaixonado lhe queriam atribuir. Mais de uma vez o ouvi dizer: "O erro foi meu"; ou "perdi a concentração e por isso bati"; ou ainda "subestimei o adversário e retardei demais a freada"; ou "fui eu que forcei demais, ultrapassei o meu limite". Nada de culpar a máquina ou de acusar os mecânicos. O Brasil se alegrava com suas vitórias e o aplaudia nos confrontos mais recentes com Nigel Mansell e Alain Prost, dois grandes campeões, quando Senna se impôs a ambos, mostrando de fato quem era o melhor. Dignidade e postura foram suas marcas. Era seu, também, um permanente inconformismo diante das agressões que sofreu na pista. Revelava aí uma enorme capacidade de indignação, quando desconhecia conveniências financeiras e profissionais só para dizer o que realmente pensava. Senna não fazia concessões sobre princípios. Não cortejava políticos nem jornalistas, nem donos de empresas. Não pedia favores. Mesmo ameaçado de interromper a carreira, recusou-se, certa vez, a assinar um contrato que lhe parecia inaceitável. Preferia parar a ceder e por isso passou meses sendo contratado corrida a corrida, um campeão tratado como principiante. Dedicado e fiel à sua família e a seus amigos, e preservando a sua privacidade, ele nos legou, ainda, uma profunda afirmação de fé, de crença em Deus, em frases singelas e firmes com que sempre se colocava diante do grande mistério. Senna nos deixou. Fica a sua saudade. E, dentro e fora das pistas, a sua grande lição de vida. Próximo Texto: A renda mínima; Massacre de Hebron; Pela revisão exclusiva; O defeito que matou Senna; Novo bicho; O elogio a Hitler Índice |
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