São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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Agora, as crianças sabem que Super-Homem morre

MARIO COHEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ele se chama Mario Mezzanote. Era um velho engenheiro da Pirelli, construtor de pneus de corrida.
Em outubro ou novembro de 1983, o Mario nos telefona de Milão dizendo que tínhamos planos para estrear na F-1 com uma pequena equipe que vinha da F-3 inglesa, a Toleman, e que deveríamos tentar contatar e contratar um jovem piloto brasileiro chamado Ayrton Senna, que era um dos pilotos mais talentosos que ele já tinha visto. Era a única possibilidade, com nossa verba, de fazermos uma decente atuação na F-1.
Eu e meu amigo e chefe Gerardo Tommasini conseguimos um encontro com Ayrton. Combinamos um almoço. O Ayrton veio me buscar no escritório. Fomos em silêncio, lentamente, até o restaurante. E sempre foi de poucas palavras a maioria de nossos muitos encontros daí para a frente.
A temporada da Toleman não foi nada excepcional, mas as equipes queriam ter Ayrton como piloto. Participei de diversas negociações e seu desejo era estar com carros competitivos, desprezando qualquer interesse financeiro.
No fim do ano ele saiu da Toleman e começou a correr com a Lotus. A Pirelli estava com a Ligier e outras equipes menores. Eu continuei acompanhando o circuito e continuamos a nos encontrar.
Até que aconteceu o Grande Prêmio do Estoril de 1985. Logo nas primeiras voltas começou a chover. Não era chuva, era um dilúvio. As equipes, uma a uma, se retiravam. Não se enxergava nada, mesmo estando parado. Mas ele voava. Com meu cronômetro tinha medo por ele, que continuava aumentando a velocidade.
Foi aí que ele ganhou seu primeiro GP. Acho que eu era o único mortal que o esperava na saída do pódio. Fui ao seu encontro, abraçamo-nos e fomos caminhando até o Motor Home da Lotus. Essa foi a primeira das únicas duas vezes em que o vi emocionado.
Continuamos a nos encontrar em jantares e nos circuitos. Até que tivemos um segundo encontro importante, em 88. Ele estava começando a correr pela McLaren.
Ele me convidou para tomarmos café-da-manhã juntos. Fiquei contando como minha vida tinha mudado depois do nascimento de meus filhos e de como sentia saudade deles. Ele ficou me ouvindo; fomos caminhando para o autódromo. Quando chegamos do lado das grades que nos separavam do público, ele se virou para mim e disse: "Pena que nunca vou poder ter esses sentimentos". Ele ganhou essa corrida e muitas outras; ganhou tudo o que se podia ganhar, namorou a Xuxa e pilotou jatos. Não nos encontramos mais.
Até que, em 91, já há bastante tempo fora da Pirelli, estava filmando um comercial em Imola. O box da McLaren ficava ao lado; Ayrton já era o maior ídolo e seu box ficava apinhado de fãs italianos. Surpreendentemente, ele pediu a um mecânico para me chamar; cumprimentamo-nos e ele me perguntou das crianças.
Nunca mais o vi. Domingo estava trabalhando no litoral sul da Bahia; paramos, como sempre, para a corrida. Ouvi sobre sua morte por um rádio. Não havia telefone para saber como iam as crianças, mas tenho certeza de que elas choravam, inconformadas porque lhes contaram que super-homem não chora e não morre. Ou será que deveríamos contar que homens choram e morrem, e chorar porque morreu um homem que não conseguia chorar?

Mário Cohen é publicitário

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