São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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Fragmento de uma época de restauração do tabagismo

OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO

Fragmento de uma época de restauraçãodo tabagismo
As provas documentais da existência do cigarro são escassas
CIGARRO (s.m.) - Tendo em vista o significado que esse termo veio a adquirir em nossa língua, ninguém poderia suspeitar que designasse inicialmente um cilindro de papel (v. verbete) em que se acondicionavam resíduos de uma planta hoje extinta, provavelmente o tabaco, cujo consumo se disseminou desde as migrações em massa para a América até alcançar grande voga três séculos depois. O estudo de Raleigh e González demonstrou inequivocamente, porém, que não é outra a origem do vocábulo.
Estranho e até repulsivo como possa parecer, nossos antepassados consumiam o produto da combustão do cigarro, aspirado diretamente pelos pulmões. A mera extravagância do hábito seria razão suficiente para que ele figurasse neste "Dicionário dos Costumes em Desuso e dos Artefatos Abolidos", onde mereceria, aliás, tratamento mais extenso e minucioso. Ocorre que um profundo hiato nos separa da época em que o tabagismo, como foi chamado, encontrava aceitação universal.
À semelhança do que se verificou com as demais drogas (v. verbete), também o cigarro parece ter experimentado um período de tolerância, quando não de encorajamento, sofrendo a seguir restrições crescentes até ser proibido e erradicado. Pelos vestígios da enérgica repressão de que foi alvo, somos levados a crer que a eliminação desse entorpecente foi especialmente penosa.
O resultado é que, embora irrefutáveis, as provas documentais da existência do cigarro são escassas e fragmentárias; nenhuma imagem do artefato, por exemplo, subsistiu, de modo que só podemos conjecturar sobre a sua aparência. É fora de dúvida, entretanto, que teve ação devastadora sobre a saúde pública, a ponto de fontes confiáveis indicarem-no como a principal causa de óbitos já na segunda metade do século 20, que assistiu aos primeiros esforços sérios de sua erradicação.
Só recentemente foram levantados os últimos interditos que cercavam a pesquisa sobre a história do cigarro e o que os estudiosos vêm trazendo à luz é quase espantoso. Forensic relata que os doentes atulhavam os corredores dos hospitais à espera de uma morte cruel e dolorosa, não raro por asfixia –quando os malefícios do cigarro demoravam a produzir sua consequência letal, a medicina da época se encarregava de levar a tarefa a termo.
Planck mostrou que antes de ser debelado o consumo do cigarro deu margem a perseguições contra grupos recalcitrantes. Na fase de tolerância, acredita Sbaglio, o costume chegara a ser incutido no próprio sistema educacional, onde as crianças eram obrigadas, como parte de seus deveres escolares, a aspirar a aversiva fuligem. E há indícios de que o cigarro se manteve por largo tempo como o principal artigo no comércio de substâncias proscritas.
Que fascínio terá o cigarro exercido sobre os antigos? A psicanálise (v. verbete), uma técnica contemporânea do tabagismo, associava o consumo do cilindro ora a um suposto impulso oral, ora a um desejo de autodestruição, ambos inatos. Wong, mais convincentemente, situa o cigarro entre as dependências negativas, sustentando que a motivação do "fumante" estaria menos nas volúpias do hábito do que na dor intolerável de se abster dele, uma vez contraído. Não por acaso, esse historiador supõe que os últimos dependentes, dados por incuráveis, foram executados de forma indolor.
A liberação das pesquisas despertou o interesse acadêmico pelo cigarro. Posto que a morte se tornou um fato relativamente incomum, Planck julga dispensáveis as antigas sanções. Springfield adotou posição intermediária, sugerindo que o consumo fosse facultado após determinada idade –200 anos, por exemplo– como uma forma de "educação para a morte". Recentemente, um laboratório sintetizou a nicotina, substância ativa do cigarro. Condenados pela Justiça, os pesquisadores aguardam a sentença de uma Corte de Apelação.

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