São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Pecado virtual

BRAULIO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

As mãos dos quatro homens arrastam para fora do Ford V-8 negro meu corpo atado de cordas; tento escoicear, mas minhas pernas estão incrustadas até os joelhos numa lata de cimento endurecido. "Agora você vai ver, `smoker' ", diz a voz de um deles. Debato-me; (um último cigarro, por favor, penso, só um trago...) sinto no saguão de minha mente a voz de meu pai, tensa: "Não vai adiantar, doutor, melhor trazê-lo de volta...". Os quatro homens me erguem e num derradeiro arranco me depositam atravessado sobre a amurada de pedra da ponte. "Ufa!...", diz outro homem, "vamos acabar logo com isto. Ou quer desistir?" Abro os olhos por trás dos pesados óculos escuros; a luz da lua rebrilha nas ondas do rio, lá embaixo. Solto um palavrão, e eles me empurram.
O choque na água gelada faz o ar explodir para fora do meu peito em bolhas retorcidas que somem velozmente para o alto; meu sobretudo e meu terno se empapam e vou descendo, revoluteando, os pulmões esvaziados; tento libertar minhas mãos atadas às costas (que luvas enormes, metálicas, são estas?...), vejo peixes esquivando-se alarmados, vejo raízes de algas que se afinam em ramículas fractais, preciso de um trago, preciso –PRECISO, CARALHO!!!, os peixes são de meia-dúzia de tipos e movem-se esquisito, mecânicos, como num "mobile" 3-D.... A lata de cimento se choca com o chão do rio, e afunda numa nuvem de lama, de plancto escuro; meu corpo oscila, um derradeiro cacho-de-bolhas me escapa pelo nariz, os pulmões, porra, como queimam os pulmões, só um, só um... E a voz dele soa outra vez tão perto (mas ali, no fundo...?), "Vamos, Flávio, aguente, só mais um pouco...". Meu corpo tomba de lado como um joão-teimoso, minha cara se enfia naquela lama esfarelada, sacudo com força a cabeça, os eletrodos (eletrodos?) quase se soltam; abro os olhos naquela treva total e antes que os pulmões estourem me obrigo a enxergar, sim, aí está, boiando diante de mim, o pequeno cilindro branco, a brasa acesa e desafiadora, a outra extremidade preenchida por uns farrapos castanhos, e mal o vejo dou o bote e abocanho, meus lábios chupam através daquilo e, oh, sim, lembrei, é assim, é bom, é bom... e o hálito de um deus rudimentar me invade.
Sinto o Cyber-helm sendo retirado, a luz do consultório me fere os olhos, acho que sou eu que balbucio delirante; um homem de barba grisalha murmura algo sobre tentar outro programa-de-choque, mas aquele rosto irreal me olha, lábios contraídos, dizendo: "Falei que não ia adiantar, Doutor... é um perdido, e não tem nem mais jeito. Diga quanto foi."

BRÁULIO TAVARES é escritor, autor de "A Espinha Dorsal da Memória" (Editorial Caminho - Lisboa)

Texto Anterior: Fragmento de uma época de restauração do tabagismo
Próximo Texto: Relatório à Academia Americana de Ciências, 2067
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.